A dignidade no trabalho

A precariedade constitui um tema quotidianamente debatido na comunicação social e tem sido objecto de investigação sociológica detalhada e em espaços sociais de trabalho distintos. O indicador de base para classificar uma situação precária ou não precária era (e continua a ser) o tipo de vínculo contratual, ainda que outros indicadores sejam considerados para ponderar esta classificação. No entanto, importa complexificar a sua análise. Serge Paugam [1], por exemplo, distingue duas dimensões da precariedade: a relativa ao trabalho, quando o indivíduo considera que o seu trabalho não tem interesse, é mal pago e não reconhecido pela empresa; e a referente ao emprego, que é aplicada aos casos em que o emprego é incerto e o trabalhador não consegue prever o seu futuro profissional.
Discutir a precariedade corresponde, assim, a equacionar uma condição social multidimensional e heterogénea. Importa, então, aprofundar um pouco mais a análise, focando a atenção nas condições institucionais de trabalho, com destaque para o refinamento de determinadas técnicas de pressão e de dominação no trabalho.
Boltanski e Chiapello [2], num trabalho acerca da forma como os discursos da gestão ocultam mecanismos de dominação, procuram mostrar de que forma os anos 60 e 90 do século XX se diferenciam e, nos tempos mais recentes, se legitimam as práticas de management que têm na sua base uma intensificação do trabalho e são, frequentemente, violadoras da dignidade do trabalho. A título de exemplo, veja-se a criação de todo um vocabulário que apela a management participativo, autonomia, mobilidade, flexibilidade, disponibilidade, responsabilidade ou criatividade. Tais palavras parecem apelar a um desempenho de trabalho desprovido de alienação, mas, efectivamente, promovem-na com outros contornos: a uma maior autonomia corresponde uma intensificação do trabalho e um acréscimo permanente dos objectivos a atingir.
Este tipo de discurso é interiorizado nas mais diversas profissões, incluindo o das profissões operárias. Ser competente é “uma pessoa que executa o trabalho com responsabilidade e profissionalismo”. Já ser operário é “trabalhar das oito às cinco, cumprir com a minha obrigação…” [3].
Se os operários já interiorizaram a conotação depreciativa da sua pertença profissional, ao nível, por exemplo, dos profissionais que realizam um trabalho de investigação, esta classificação é sinónimo de desqualificação: “Eu vejo-me como um operário. Eu sou um operário não especializado do ensino e da investigação. Se me disserem para fazer ortofonia, eu faço ortofonia, se me disserem para ir ensinar história e psicologia eu vou. Eu sinto-me como um operário. É isso que significa ser um intelectual hoje em dia” [4].
A problemática das formas de pressão e de dominação no trabalho associa-se ao tema do “assédio moral”, estudado amplamente em França [5]. Este tema levanta questões acerca das relações de trabalho e dos mecanismos crescentemente apurados de pressão de que as pessoas são alvo nos seus contextos de trabalho. A violência física e psicológica exercida nos locais de trabalho sobre os indivíduos não é uma realidade recente. A questão que se coloca é que se assiste a uma sofisticação de alguns princípios de gestão dos recursos humanos, em parte de inspiração taylorista. É formalizando procedimentos e criando regras que os indivíduos vão sendo sujeitos a formas “invisíveis” de dominação com a eficácia desejada de se alcançarem os objectivos definidos. Um dos indicadores que determinados estudiosos referem como sendo claros deste processo é a vaga de suicídios nos locais de trabalho que tem ocorrido, por exemplo, em França de trabalhadores altamente qualificados em empresas como a Renault ou a France Télécom.
A Organização Mundial de Saúde, em 2007, inclui na classificação das doenças e problemas de saúde, um grupo de “problemas relacionados com emprego e desemprego”, em que se inclui a “mudança de emprego”, a “ameaça de perda de emprego”, o stress provocado pelo horário de trabalho e as situações de “discordância com o patrão e os colegas de trabalho”. Em Portugal, no artigo 29º nº 1 da Lei nº 7/2009 que aprova a revisão do Código do Trabalho, pode ler-se: “Entende -se por assédio o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em factor de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.”
Numa investigação realizada em Portugal em 2010 [6], encontram-se testemunhos claros destes processos, assim como de um advogado e de um médico psiquiatra que chama a atenção para o facto de se encontrar casos, quer de trabalhadores pouco qualificados, quer altamente qualificados, como quadros superiores de empresas industriais e da banca.
Trata-se de uma realidade de uma elevada complexidade, difícil, senão mesmo impossível, de mensurar, mas que exige repensar os espaços sociais de trabalho.
O trabalho constitui um eixo central na vida dos indivíduos. As teses sobre o fim do trabalho, para além de não se verificarem, são mesmo contrariadas pela presença crescente do trabalho na vida dos indivíduos. Em temos tão conturbados como os que vivemos, é fundamental que o trabalho constitua um espaço propiciador do desenvolvimento de mecanismos de identificação profissional: com quem se trabalha e com o que se faz, valorizando mecanismos simbólicos de reconhecimento. Exige equacionar a sua complexidade e reflectir sobre os mecanismos sociais de dignificação e reconhecimento no e pelo trabalho, indo mais além das condições objectivas da sua execução.
 
Luísa Veloso in barometro.com.pt
Notas
[1] Paugam, Sege (2000), Le salarié de la précarité. Paris: PUF.
[2] Boltanski, Luc; Chiapello, Ève (1999), Le nouvel esprit du capitalismo, Paris: Gallimard