Lutar pela utopia da razão

Nunca gostei da palavra utopia; os que a invocavam traziam atrás de si, em vez do tal sol rutilante que brilharia para todos nós, uma imensa cauda de mortos - assassinados pelo crime de defenderem utopias diferentes das dos seus assassinos. Cresci quando a fraude dos regimes comunistas já era mais do que óbvia, pelo que tive e tenho dificuldade em perceber como é que tantas pessoas inteligentes e genuinamente bem intencionadas apoiaram durante tanto tempo ditaduras violentas e redutoras das capacidades do ser humano.
Que algumas dessas pessoas ainda continuem a defender as ditaduras que subsistem, ou as anarquias que a elas conduzem, é para mim um mistério. O capitalismo desenfreado também não é sistema que se defenda - mas opô-lo a um igualitarismo repressivo e castrador, baptizando-o com o romântico nome de utopia, não é solução.
Assim, gosto ainda menos dos que se riem da palavra, baixando os braços diante da possibilidade de a recuperar como síntese de sonho e razão, ou como lugar (topos) do sonho. Do riso sarcástico da desistência não nasce nada. Das oposições binárias tão-pouco: com o avançar da História, fascismos e comunismos confundem-se na mesma recusa da liberdade individual, do mesmo modo que as democracias se deixam esmagar, mais à esquerda ou mais à direita, pela ganância do poder e do lucro.
A direita pós-moderna defende a liberdade económica absoluta - o reinado dos bravos e competentes - e repressão das liberdades individuais: proibição do casamento (e dos direitos a ele associados) aos homossexuais, proibição da interrupção voluntária da gravidez, posse da alma dos filhos por parte dos pais (negando-lhes o direito à informação e à autodeterminação) e, nalguns casos, pena de morte (embora nunca a eutanásia, o que não deixa de ser curioso).
A esquerda pós-moderna defende a repressão da liberdade económica, em prol de uma sociedade economicamente mais equilibrada, recusando a cultura da avaliação do mérito e tudo o que cheire a protagonismo individual, considerado "alienante". Esta determinação antialienação e antiempresarial leva a que, por exemplo, os hipermercados se encontrem fechados ao domingo, dia em que os pobres têm de fazer as suas compras nos supermercados - mais pequenos e mais caros.
Em termos de costumes, a esquerda é muito mais libertária do que a direita - excepto no que diz respeito ao tabaco, talvez porque é um negócio de multinacionais legais e não de produtores de droga revolucionários. De um lado ou de outro do espectro político, foge-nos sempre o pé para a prepotência e o mandarinato.
Talvez nunca cheguemos a um sistema político perfeito - mas isso não é motivo para deixarmos de tentar. Que alternativa nos resta? Aquela pela qual a velha Europa se vem a bater, mas de mansinho, desde há vários séculos: o secularismo, concomitante com a descoberta da Razão humana e da sua capacidade transformadora. O cogito, ergo sum de Descartes, ainda tão pouco explorado. O secularismo, só por si, não basta - o Médio Oriente é o exemplo calamitoso disso: quando o pensamento secular é representado por nomes como Muammar Kaddafi ou Saddam Hussein, Arafat ou Mubarak, o povo volta-se para o céu, e Alá toma a aparência da revolução. A oposição religiosa é mais difícil de combater, até fisicamente, do que a laica - as sedes partidárias podem invadir-se ou explodir-se com mais despacho e menos alarido do que as mesquitas.
A crise do Irão é um indício de mudança - mas não um sinal de mudança de modelo, ou de utopia. É curioso que a referência permanente de Ahmadinejad seja o nazismo, quer para negar o holocausto quer para definir todos os que o contestam como "nazis". Paradoxo? Nem por isso: o seu ídolo é claramente esse outro louco fatal chamado Hitler - como ele, um populista mal disfarçado de homem providencial. E é significativo que a esquerda portuguesa, tão lesta a manifestar-se em frente da embaixada de Israel, permaneça sossegada diante das notícias de violência e repressão que, apesar da expulsão dos jornalistas, teimam em chegar-nos do Irão.
Enquanto a esquerda ocidental insistir em tratar a intolerância religiosa, a discriminação das mulheres e o ódio aos homossexuais como "variantes culturais" que devem respeitar-se, não há utopia que nos valha.
Inês Pedrosa in expresso.sapo.pt