O individualismo e consumo

A época que nos caracteriza aparece como um novo momento de modernidade, não como a pós-modernidade mas já como uma hipermodernidade, que tem como característica principal a exacerbação, a intensificação das lógicas constitutivas da modernidade desde o século XVII (primeira revolução individualista) e estas lógicas são fundamentalmente duas e não são estranhas uma para com a outra: a lógica do mercado (mercantilização, do consumo desenfreado, do frenesim pela aquisição de novidades e diversões) e a lógica da individuação. Como será então o futuro estando ele assente nestes dois princípios, o consumo e o individualismo?
Hoje assistimos a uma paixão individualista que aparece cada vez mais encarnada na vida consumista que levamos, no frenesim da compra e do divertimento que caracteriza do mundo contemporâneo. Admite-se que vivemos numa sociedade de consumo de massas, que aparece fundamentalmente nos anos 50 e 60 do século passado, mas esta sociedade já avançou para uma nova era, a era que designo e proponho como a “sociedade do hiperconsumo” onde agora o consumidor é um hiperconsumidor, pois deixou de haver um consumo semicolectivo onde se procurava equipar a unidade doméstica – a família –, ou seja, um consumo por família, mas esta outra e nova lógica aponta para um consumo cada vez mais individual, onde este está no centro e compra “equipamentos” para a sua satisfação pessoal.
Com esta transformação vemos que a sociedade de consumo clássica favoreceu a individualização tanto dos gostos como dos comportamentos, mas a nova sociedade do hiperconsumo (potenciadora da destradicionalização) procura uma verdadeira “escalada” do individualismo, ou melhor, do hiperindividualismo. Por outras palavras, paradoxalmente a sociedade que se diz ser da massificação e da normalização é também ela a da personalização, da individuação das atitudes e dos gastos e, consequentemente, do hiperconsumo e da hiperindividuação. Ora, como aspectos positivos do consumo temos como resultado uma maior autonomia privada, mais informação e comunicação e uma maior esperança de vida nas nossas sociedades; contudo, também não se pode esquecer uma outra dimensão essencial do consumo que se alicerça no capitalismo, é que este hiperconsumo não pode ser interpretado como uma simples alienação dos indivíduos como se se tratasse de uma toxicodependência. Há uma outra vertente no consumo, e ser-se-á redutor se se proceder a uma análise deste consumismo só pela via da sedução.
A verdade é que esta hiperindividualização do consumo – e alguns dizem que tal não poderá continuar, ao passo que a minha opinião é que sofrerá inclusive um incremento (veja-se por exemplo, o consumo de alimentos já pré-confeccionados, de saladas ou legumes já embalados, de refeições preparadas para uma só pessoa), toda esta lógica do indivíduo não está de facto a diminuir mas a aumentar. Assistimos sim ao fim do hiperconsumo irresponsável, devorador de energias não renováveis e poluentes, mas hoje consome-se mais e mais e agora em toda a parte (veja-se, por exemplo, o caso da China) e a todo o instante. E tudo isto também parece apontar para um crescimento do isolamento do indivíduo que reflete os seus estares e mal-estares e sentimento de incompletude no seu dia a dia e que os vê compensados no. Ora, também esta hiperindividualização suscita muitas críticas, por exemplo, a questão da solidariedade, da partilha e do respeito pelo meio ambiente (é inevitável num futuro próximo menor desperdício, energias mais limpas e um eco-consumo, ou seja, estamos a falar de uma nova cultura de um hiperconsumo sustentável).
Uma questão emerge rapidamente aqui: existirá um modelo alternativo ao hiperindividualismo? O decrescimento? A auto-redução das necessidades? O modelo bioecológico que não comporta a satisfação de consumo de 7 biliões de pessoas consumidoras? É verdade que estas propostas têm alguma sustentação, inclusive científica, mas penso que este conjunto de práticas não anunciam a ultrapassagem do hiperindividualismo. Cada um quererá ter cada vez mais o equipamento que é “seu”, e esta lógica não para porque tem em si o germe de uma certa autonomia individual, e o desejo das escolhas individuais continuará a desenvolver-se.
Podemos dizer que tudo isto demonstra um carácter que é irresistível e que se estende à totalidade do nosso mundo, e possuo a convicção que o desafio ecológico não acabará com esta dinâmica da individuação. Podemos mesmo dizer que este individualismo do consumo apareceu e se mantém em paralelo com aquilo que vemos na família, na política e na economia ou outros sectores da sociedade em geral.
Hoje o hiperconsumidor procura também produtos low cost e produtos de luxo. Será que a crise económica e financeira que atravessamos irá transformar tudo isto? Não creio! O luxo hoje não é algo que esteja e diminuir, ele representa uma dimensão eidética que é a da “qualidade”; existe nele aquela ideia de que se merece o melhor que há pois “só se tem uma vida” e há que vivê-la o melhor. Em relação ao low cost, não é a crise que veio criar este conceito pois ele já existia, mas si o próprio hiperconsumo. São as “necessidades” que fazem com que as pessoas tenham de pagar aqui e ali para poderem manter o seu crescente ritmo e desejo de consumir.
Outro aspecto interessante é também a presença e omnipotência das marcas, toda uma lógica de moda, de logotipo, da imagem que também parece e é imparável. Os consumidores enquanto desorientados, sem referenciais estruturantes, vêem nas marcas e naquilo que elas representam um polo, um referencial, algo de estruturante. No futuro, penso, não assistiremos a um consumo mais racional e que deixe de lado as marcas, pois estas oferecem e conferem a quem as compra segurança e permitem “o sonho”, pelo contrário! Digo mesmo que o hiperconsumo não é uma tendência curta ou uma moda efémera, mas ele tem e irá desenvolver-se. Não nego que é possível que alguns consumos retrocedam (veja-se o que se passa em países como a Espanha ou mesmo os Estados Unidos) para algumas “categorias” médias, mas as práticas reais não demonstram que o modelo já tenha desaparecido ou esteja mesmo em declínio, uma certeza é esta: as pessoas não deixarão de consumir. Nas próximas décadas ainda teremos este modelo, certamente, pois o modelo social é este que busca no consumo uma escapatória para o homem. O consumo é visto como um estimulante e também uma terapia para o indivíduo que está desconectado do social. É de sensações e de uma sensação do “novo” que nos vendem, e o consumidor é hoje um coleccionador de experiências que espera sempre algo de novo quando lhe é vendido um produto.
Em suma, o consumidor ainda não se tornou num consumidor perito, cauteloso, exigente, informado (e pensar nestes moldes é ser otimista!); verificamos que houve até algumas melhorias neste campo, mas esta é apenas um tendência minoritária pois do outro lado existe uma tendência que é verdadeiramente um caos. A transição para uma economia mais sóbria, mais ecológica, menos poluente e mais amiga do ambiente é ainda uma miragem; o hiperconsumo de hoje é o reflexo de uma sociedade da mercantilização da vida e de experiências, onde já nada escapa ao acto de compra e venda e esta mercantilização – em termos de serviços, por exemplo – ou melhor, o hiperconsumo, vai aumentar. Vejamos o que se passa inclusive em termos culturais, por exemplo, o caso da música, dos restaurantes e do tipo de ofertas possíveis nas nossas sociedades, e recordo agora, este propósito, o que se passou recentemente, no Japão, com a catástrofe natural e nuclear de Fukushima. O que é que aconteceu? Apenas três meses depois, e de acordo com os dados económicos, para espanto de muitos e diante de tamanha desgraça, as grandes marcas, por exemplo, as francesas, conseguiram voltar aos níveis de vendas do ano anterior, e isto mostra que o consumo de marcas de luxo está longe de chegar ao cume do seu desenvolvimento. O luxo representa um ideal estético de felicidade, de “boa vida”, de combate à depressão, algo que proporciona experiências. Ora, se nem acontecimentos graves como este travam o consumismo o que é que o poderá fazer? Pensei sobre este caso!
Viver para o consumo e pelo consumo é algo que tem de ser denunciado, mas não nego que o consumo também tem bons aspetos. Para reduzir as paixões consumistas é preciso opor-se esta com outras paixões, como dizia Espinosa. Temos de criar uma pedagogia das paixões, isto é, temos de propor tarefas de redireccionação destas paixões e essa deve ser também uma das tarefas das escolas e outras instituições públicas que formam cidadãos; ou seja, é necessário que emerjam outras paixões e também necessitamos urgentemente de uma ecologia do espírito, das paixões, pois o consumo contemporâneo assumiu um lugar desajustado. Temos de investir em novos modos de educação e de trabalho para que os próprios indivíduos encontrem outra identidade.
A lógica do individualismo diz que o indivíduo hoje é tudo; ele constitui o fundamento das sociedades modernas, o código genético das sociedades contemporâneas. A modernidade pela primeira vez pôs a sociedade a pensar-se a partir do átomo que é o indivíduo, mas este reconhecimento da autonomia individual não chegou logo ao ponto em que nos encontramos hoje. Refiro-me às ideologias, a uma socialização desigual onde homens e mulheres não tinham os mesmos direitos e, até meados do século XX, constituiu-se um individualismo limitado. Contudo, este individualismo formalmente autoritário, disciplinado, sexista, etc., terminou e presentemente estamos a viver um outro e novo individualismo; ou melhor, uma revolução, o seu próprio oposto, um individualismo desregrado, hipermoderno que radicaliza, que leva até aos limites a afirmação da autonomia e isto não termina às portas do ocidente. Vejamos, por exemplo, novamente o que se passa na China, ou até no Irão. A tendência é a favor da escalada do hiperindividualismo e também isto é irresistível, inevitável e chegará a um fim.
Os vícios do individualismo são conhecidos por todos: por exemplo, a devastação as florestas, o culto do dinheiro, o egoísmo, a indiferença, o cinismo, e isto é só uma tendência pois não é a sua própria definição. A época do hiperindividualismo também não coincide com o fim da ética e da moral; na realidade não há um só individualismo, mas dois: um fabricado pelas “altas individualidades”, o individualismo do tipo irresponsável, que segue a máxima “o eu antes de todos, ou seja, cada um por si”; e o segundo tipo é o individualismo responsável, que quer conciliar os direitos de cada um com os direitos de todos. Ora, o mundo dependerá no futuro, inevitavelmente, do estado de confronto entre este dois individualismos hipermodernos e este caminho que aqui se delineia não é uma fatalidade mas sim um desafio ou o desafio do nosso século XXI.

Miguel Alexandre Palma Costa (Apontamento de Comunicação in IVª Conferência Internacional do Funchal, 04 e 05 de Novembro de 2011)