Tal como tu dizias, Mário de Sá Carneiro, também "… dentro de mim há um fardo que não pesa, mas que maça…". E, tal como a ti, me atormenta também a "comichão que não passa" de um quotidiano espapaçado no torpor dos dias opacos, estaticamente imutáveis.
Imobilizo-me na raiva que me vem da gritaria inconsequente e selvagem de uma juventude ululante, frente aos televisores da bola, gente pequena postada na cultura da parasitice, a mesma que um dia será chamada a servir um país a boiar há séculos em esperas inúteis.
Para meu desespero, o sossego é sempre coisa por chegar. Colados a mim, fedelhos de palmo e meio aguçam as cordas vocais em guinchos histéricos e insuportáveis. Os progenitores das "crias" abstraem-se embalados na apatia do diálogo morno e fútil que o fumo do cigarro atira para o saguão do dia-a-dia insosso e pardo.
As noites quentes são uma passerelle de exibições. Desfilam decotes que desnudam seios a abanar vaidades, e minguam saias que escondem ainda o que sobra de coxas com glúteos voluptuosos, mas iguais a todos os outros.
Velhos de mão dada seguram o que resta ainda de um contrato antigo, fatalmente desgastado por percursos sem retorno.
Os bêbados inofensivos de outrora que se arrastavam pelas esquinas articulando sons que o vinho tornava indecifráveis são os energúmenos sem lei que hoje se instalam nas esplanadas vociferando urros lubrificados por rios de cerveja. Rapam o crânio na ilusão de lhes renascer a inteligência que a estupidez definitivamente atirou para a montureira da imbecilidade. Quanto mais sórdida a miséria, maior a ostentação da decadência mental. Sempre assim foi e há-de ser.
Aquela velha precoce que o raquitismo da infância condenou a não mais que metro e meio de altura e a indigência tornou ainda mais pequena espoja-se num banco de pedra ainda quente do sol abrasador do dia, segurando um saco de plástico amarrotado e sujo. Já não suplica a esmola como dantes, porque o cansaço e a indiferença há muito lhe silenciaram os murmúrios. Escrava vitalícia da caridade, limita-se agora a aparar na mão encardida os cêntimos sobrantes de alguma carteira magra.
Um velho quezilento à beira dos setenta, que a beatice de um seminário longínquo atirou para a superficialidade da mentira fútil e do egocentrismo, caminha, anónimo, lambendo um sorvete com a mesma volúpia com que contempla todos os dias o umbigo das suas preocupações caricatas e gratuitas. Nada existe para além de si próprio, senão ele próprio, mergulhado na arrogância de si próprio.
Deixo cair o olhar num casal que se aproxima espreitando a mesa vaga que melhor se enquadre na plateia do circo. Ele, careca e grosseiro a quem uns quarenta bem puxados já impuseram degradante rotundidade abdominal, precede imediatamente a mulher de trinta, ufana de um seio de proeminências duvidosas, e ofuscante na arrogância de um salto desmesuradamente alto. A calça branca, muito justa, envolve-lhe musculaturas torneadas por abstinências cruéis e ginásios de sofrimento. Fetiches doirados e sonoros que uma mão de dedos longos impedem cair-lhe do pulso são o remate final de misticismo barato que faltava ao manequim.
Tudo se afiguraria normal tendo em conta o mercado de exibições em que se convertem as esplanadas das noites citadinas de estios quentes, onde cada aspirante e actor, consoante o engenho, se insinua o melhor que sabe, desde estendais de beijinhos colectivos e sorrisos de circunstância à exibição lasciva de intencionalidades disfarçadas (com carácter de urgência…), próprias do ardil e das subtilezas do homem e da mulher.
De facto, tudo, enfim, pareceria razoável dentro da aberração que escondem certas razoabilidades, não fora aos olhos do observador inveterado a extravagância irritante do sujeitinho careca e gordurento a tocar obstinadamente os quadris da beleza que se equilibrava à sua frente, como o moleiro de outrora tocava a burra obediente no carrego da farinha, na intenção única de avisar a navegação de que o espécimen raro que levava pela arreata era pertença sua, exclusivamente sua e de usufruto intransmissível. Que todos o saibam! "Deste pomar, só eu colho…", que é como quem diz "neste pomar só eu entro…". Convicções ingénuas! – "Ninguém é de ninguém… até quem nos abraça…", diz o velho bolero carioca…
E ei-los que surgem. Não podiam faltar. Os pindéricos da política. De tantos, felizmente apenas seis. Vêm descendo a escadaria que um Polis manco e vesgo concebeu para quadrúpedes, porque apenas os desta condição conseguem percorrê-la com a comodidade que os humanos nunca conheceram.
Após mais um concílio de tretas e protagonismos deixam o senáculo e descem ao proscénio das exibições. Vêm apressados, que é coisa própria de gente importante. À cabeça do desfile, o mandador, em camisa de manga comprida que o provincianismo saloio e os trinta e cinco graus centígrados da noite ainda não conseguiram substituir por manga curta, cómoda e higiénica. É um homem pequeno ao qual a presunção disfarçada dá uns míseros centímetros mais. Com ele ombreia o ordenança servil e venerador e, a precedê-los, a matilha do staff edil que tudo decide nas costas do Zé-povinho alarve e acomodado.
Param. Distribuem beijinhos e vigorosos apertos de mão aos passantes que neles vêem ainda uma casta diferente, superior, quase mítica. Dando-se ares de gente comum, passeiam o olhar discreto pela esplanada na busca de alguém apanhado a mirá-los… - "…olha o olhar que têm os homens da política!...", avisava António Nobre há cento e cinquenta anos!... Os dossiers gordurentos colados à cova do braço denunciam duelos venenosos urdidos na cumplicidade do ar condicionado… São estes, à sua escala, os salvadores da Pátria, rendidos à ganância planetária da vã glória de mandar.
"… E vós, nojentos da política, que explorais eleitos o patriotismo, maquereaux da pátria que vos pariu ingénuos e vos amortalha infames…" – se foi assim que há noventa e cinco anos os definiste, oh, génio Almada Negreiros, "poeta de Orpheu, futurista e tudo", acredita que da mesma forma outros o farão por ti nos milénios mais próximos, engrossando a sua ira em arsenais gigantescos de manguitos!
Já vejo a prostituta que acabou de sair de casa como a osga sai à noite do buraco da telha vã, à caça de sustento. Em qualquer comunidade há sempre uma, pelo menos, que assume a sua condição sem pudores nem preconceitos. Caminha ondulante na atmosfera quente da avenida. Selecciona um banco bem iluminado. É imperioso que mostre o corpo semi-desnudado, de perna sensual e seio concupiscente a puxarem lubricidades e estertores carnais. Senta-se e dedilha o telemóvel. Se o peixe tarda em "picar", muda de banco no desespero de uma sobrevivência ameaçada, como o saltimbanco espreita habilmente na feira o lugar mais estratégico.
"A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos". Quando um dia o afirmaste, Álvaro de Campos, tu é que sabias (oh! se sabias…) que a humanidade (certa humanidade) não deixará nunca de avançar senão na razão directa das coisas banais e inúteis. Quando o nada se instala, o futuro estatela-se no charco da impavidez e da inércia. Depois, fica o lamento secular de gerações a navegarem um mar de esperanças eternamente adiadas.
Ergo-me, cansado, da mesa cúmplice que outro saltimbanco decerto imediatamente ocupará e distancio-me do bulício que me tresanda a tédio e a bafio. Decididamente vou estender-me no leito da madrugada, a mãe implacável e fatal de todas as minhas negações, de todos os meus impossíveis.