A natureza da ciência e a natureza da religião - A Ciência

A primeira coisa a dizer, aqui, é que é extremamente difícil caracterizar estes fenómenos. Primeiro, considere-se a ciência: o que é exactamente a ciência? Como podemos caracterizá-la? Quais são as condições necessárias e suficientes para que uma dada investigação ou teoria ou tese seja científica, faça parte da ciência? Está longe de ser fácil sabê-lo. Propôs-se várias condições essenciais da ciência. Segundo Jacques Monod, “O crucial do método científico é o postulado de que a natureza é objectiva [...] Por outras palavras, a negação sistemática de que o “verdadeiro” conhecimento possa ser obtido interpretando a natureza em termos de causas finais [...]” (Monod 1971, 21, itálico de Monod). Na década de 1930, o eminente químico alemão Walter Nernst defendeu que a ciência, por definição, exige um universo infinito; logo, a teoria do Big Bang, afirmou, não é ciência (von Weizsäcker 1964, 151). Outra restrição proposta: a ciência não pode envolver juízos morais, ou juízos de valor mais em geral.
Há obviamente uma conexão íntima entre a natureza da ciência e o seu objectivo, as condições sob as quais algo é ciência bem-sucedida. Há quem diga que a ciência é explicação (seja isto posto, ou não, ao serviço da verdade). Há quem afirme (os realistas) que o objectivo da ciência é apresentar teorias verdadeiras; outros afirmam que o objectivo da ciência é fornecer teorias empiricamente adequadas, sejam verdadeiras ou não (van Fraassen 1980). Há quem diga que a ciência não pode lidar com o subjectivo, mas apenas como que é público e partilhável (e, portanto, os relatos sobre a consciência constituem uma matéria mais adequada de estudo científico do que a própria consciência). Há quem diga que a ciência só pode lidar como que é repetível; há quem o negue. No furor sobre o ensino do “Desígnio Inteligente” (DI) nas escolas públicas, houve quem dissesse que as teorias científicas têm de serfalsificáveis, e, dado que a proposição de que as coisas vivas (os coelhos, por exemplo) foram concebidas por um ou mais agentes inteligentes não é falsificável, o DI não é ciência. Há quem faça notar que muitas teses eminentemente científicas — por exemplo, há electrões — não são falsificáveis isoladamente: o que é falsificável sãoteorias completas sobre electrões. E apesar de a proposição de que as coisas vivas foram concebidas por um ser inteligente não ser falsificável isoladamente, a proposição de que um ser inteligente concebeu e criou coelhos de meio quilo que vivem em Cleveland é claramente falsificável (e falsa). O primeiro grupo pode responder que esta proposição sobre coelhos de meio quilo é apenas equivalente, na verdade, às suas implicações empíricas, i.e., à proposição de que há coelhos de meio quilo que vivem em Cleveland, de modo que o pedaço sobre quem os concebeu desaparece, na verdade. O segundo grupo pode então retorquir que, sendo assim, o mesmo tem de se aplicar às teorias sobre electrões; mas nesse caso as teorias sobre electrões são apenas equivalentes, na verdade, às suas implicações empíricas, de modo que os electrões desaparecem.
Há ainda quem afirme que a ciência se limita ao “naturalismo metodológico” (NM) — a ideia de que nem os dados para uma investigação científica nem uma teoria científica podem referir-se apropriadamente a seres sobrenaturais (Deus, anjos, demónios); assim, não se poderia apropriadamente propor (como parte da ciência) uma teoria segundo a qual a irrupção recente de comportamentos estranhos e irracionais em Washington D.C. se deve ao aumento de comportamentos demoníacos nessa área. Como saber se o NM é realmente uma limitação essencial da ciência? Há quem diga que é apenas uma questão de definição; é o caso de Nancey Murphy: “[...] há o que poderíamos chamar ateísmo metodológico, que é por definição comum a toda a ciência da natureza” (Murphy 2001, 464). E continua: “Trata-se simplesmente do princípio de que as explicações científicas procedem em termos de entidades e processos naturais (e não sobrenaturais).” De modo semelhante, Michael Ruse: “ Os criacionistas crêem que o mundo começou milagrosamente. Mas os milagres estão fora dos limites da ciência, que por definição lida apenas com o natural, o repetível, o que é regido por leis” (Ruse 1982, 322). Por definição do quê? Por definição do termo “ciência,” supostamente. Mas há então quem pergunte: que dizer do Big Bang? Se afinal for irrepetível, teremos de concluir que não pode ser estudado cientificamente? E considere-se a tese de que a ciência, por definição, lida apenas com o que é regido por leis — leis da natureza, supostamente. Alguns empiristas (em particular, Bas van Fraassen) defendem que não há leis da natureza (só há regularidades): se tiverem razão, seguir-se-á que não há coisa alguma para ser estudada pela ciência? Além disso, apesar de algumas pessoas argumentarem que o NM é uma limitação essencial da ciência, outras põem isso em causa: mas pode uma disputa séria ser resolvida citando apenas uma definição?
Apresentar condições necessárias e suficientes plausíveis da ciência está consequentemente longe de ser trivial; e muitos filósofos da ciência desistiram do “problema da demarcação,” o problema de propor tais condições (Laudan 1988). Talvez o melhor que podemos fazer é apontar para exemplos paradigmáticos de ciência e exemplos paradigmáticos de não-ciência. Claro que pode ser um erro supor que estamos aqui perante uma só actividade, e um só objectivo. As ciências são muitíssimo variáveis; há o género de actividade que ocorre em ramos muitíssimo teóricos da física (por exemplo, investigações sobre o que aconteceu nos primeiros 10-43 segundos, ou a tentativa de descobrir como sujeitar a teoria das cordas a verificação empírica). Mas há também o género de projecto exemplificado por uma tentativa de saber como a população de touconderos respondeu à devastação da selva amazónica ao longo dos últimos vinte e cinco anos. No primeiro tipo de explicação pode fazer sentido pensar que o que se quer é uma teoria empiricamente adequada, pondo-se pelo menos temporariamente entre parêntesis a questão da verdade da teoria. Mas o mesmo não acontece em casos do segundo tipo; aqui, nada servirá a não ser a verdade sóbria.
O mesmo acontece com o naturalismo metodológico. Alguns projectos científicos são claramente limitados pelo NM (veja-se abaixo); uma condição de adequação teórica, nesses casos, será certamente que a explicação em causa seja naturalista. Mas é o NM em si parte da própria natureza da ciência enquanto tal? Segundo Isaac Newton, que se diz muitas vezes ter sido o maior cientista de todos os tempos, as órbitas dos planetas cairiam no caos sem intervenção externa; consequentemente, propôs que Deus ajustava periodicamente as suas órbitas. Apesar de esta ser uma hipótese de que já não precisamos, será óbvio que acrescentá-la à explicação de Newton dos movimentos dos planetas tem como resultado algo que não é realmente ciência? Isso parece desnecessariamente excessivo.
Talvez devamos ver o conceito de ciência como um daqueles conceitos aglomerativos para os quais Tomás de Aquino e Ludwig Wittgenstein chamaram a atenção. Talvez haja várias actividades bastante diferentes a que damos o nome “ciência;” estas actividades relacionam-se entre si por semelhança e analogia, mas não há uma actividade única que seja apenas ciência em si. Há projectos para os quais o critério de sucesso envolve fornecer teorias ¬verdadeiras; há outros onde o critério de sucesso envolve fornecer teorias que são empiricamente adequadas, sejam ou não também verdadeiras. Há projectos limitados pelo NM; há outros projectos que não têm essa limitação. Estes projectos ou actividades caem todos sob o significado do termo “ciência;” mas não há uma actividade única da qual todos sejam exemplos. (Do mesmo modo, o xadrez, o basquetebol e o póquer são todos jogos; mas não há um jogo único do qual todos sejam versões.) Talvez o melhor que podemos fazer, com respeito à caracterização da ciência, é dizer que o termo “ciência” se aplica a qualquer actividade que seja 1) uma actividade sistemática e disciplinada que visa descobrir a verdade sobre o mundo,1 e 2) tem um envolvimento empírico significativo. Isto é, evidentemente, vago (quão sistemática? Quão disciplinada? Quanto envolvimento empírico?) e talvez demasiado tolerante. (A astrologia conta como ciência, ainda que seja má ciência?) Apesar de tudo, temos muitos exemplos excelentes de ciência, e exemplos excelentes de não-ciência.

Alvin Plantinga in  http://plato.stanford.edu/archives/sum2010/entries/religion-science/.