Culinária e técnicas de enxertia no programa de filosofia.


Com o passar dos tempos, a Matemática tomou conta da Lógica e na Filosofia alguns resistentes teimaram em manter esta disciplina como sendo fundamental no nosso curriculum. Afinal trata-se da mesma coisa, ou existem diferenças que justifiquem a distinção entre uma lógica matemática e uma lógica filosófica?
Antes de mais, um detalhe importante: a Lógica, como a Psicologia, a Biologia ou ainda a Matemática, é uma ciência independente. Justifica-se então o estudo da Lógica no nosso contexto?
A pergunta é importante porque a Lógica foi sendo mantida nos programas mais antigos e também neste que está em vigor sem que estas perguntas tenham merecido uma reflexão séria. Daí que existam aberrações na apresentação dos conteúdos nos vários manuais ao longo dos anos: partiu-se apenas de uma "impressão" de que a lógica devia ser útil e decidiu-se pôr lá qualquer coisa de lógica sem perceber muito bem o propósito e sem seleccionar criteriosamente conteúdos e articulações - "temos que ter aqui qualquer coisa de lógica"... razões provavelmente muito sérias...
Como se um programa fosse uma árvore de frutos, enxertou-se uma opção de lógica tal como apareceria num manual típico de uma "escola Cartesiana" (refiro-me a Descartes, um filósofo racionalista, por quem não tenho grande respeito) e a que levianamente se chamou lógica clássica. A técnica do enxerto é mais uma receita culinária: uma pitada de tabelas de verdade, uma colher de sopa de cálculo de predicados (para dar um ar sério à coisa), 300 gramas de regras e princípios básicos (para pensarem que isto é dado como ciência exacta), deixa-se apurar um pouco mexendo com uns truques para aplicar ao discurso, (para parecer que até se ensinam técnicas que permitem desmontar discursos sofistas)… e assim se alcança a “poção mágica” pretendida…
Estes enxertos tornaram-se um expediente com selo de garantia e de liberdade intelectual: os profs dirão "todos" umas coisas sobre retórica, escolherão entre o "paradigma aristotélico" e darão umas regras dos silogismos... ou então adoptarão o "outro paradigma" (como o vamos baptizar?...) e darão umas tabelas de verdade!
A "palhaçada" parece-me evidente: da dita lógica Aristotélica nunca se produziu saber nos últimos séculos. Se a cura está nos cálculos e numas tabelas de verdade (só se for!…), porque não adoptá-la? É que enquanto ensinamos tabelas de verdade, nós, professores, sabemos o que estamos a dizer e como avaliar os exercícios dos alunos (espero que isto seja verdade!).
As tabelas de verdade só terão sentido no Ensino Secundário como um meio. Mas… para que fim? Não se vê como responder a esta pergunta. É apenas mais uma daquelas coisas que o aluno aprenderá sem saber para quê, mas com a esperança de que mais tarde, na universidade, talvez isso seja útil. Na verdade, se seguirmos fielmente o programa da dita Lógica Moderna, que supostamente reflectiria o progresso da lógica, teremos poucos ganhos: o aluno vê que há por ali alguma coisa de rigoroso, apesar de não perceber muito bem o que é; e (este talvez seja um grande ganho) impede-se o aluno de pôr na cabeça aquela salgalhada de metafísica, epistemologia e lógica aristotélica da opção da dita "Lógica Clássica". Pelo menos não se ensina com todo o aspecto de rigor uma teoria da origem dos conceitos que depois se vai desdizer, sem pestanejar, quando se refere Piaget ou até Kant...
Afinal, para que serve a lógica na Filosofia do Ensino secundário?
Depois do diagnóstico anterior, resta começar com a parte mais positiva. E para nos entendermos, convém acordar sobre o que se faz na lógica para depois vermos o que ela pode fazer na Filosofia do Ensino Secundário.
A lógica estuda a validade da argumentação. Por "argumentar" não se pode entender, como surge em muitos manuais, uma coisa oposta à demonstração. O termo engloba tudo aquilo onde a questão da validade está em causa. Estuda, portanto, a validade de tudo aquilo a que chamamos provas, demonstrações, justificações, defesa de ideias e semelhantes.
Infelizmente, mal damos este passo, "topamos" com uma confusão espalhada nos manuais: uma "mal amanhada" oposição entre argumentação (retórica) e demonstração (lógica). Boa parte desta “trapalhada” arruma-se com o seguinte argumento: nenhum pedaço da retórica pode explicar a validade de um pedaço de discurso com a forma: Se o João tem cérebro, então é um ser humano; ora ou é o João ou é uma galinha; não é uma galinha, então é um ser humano! (espanto-me com o que escrevi!). Formalizando: A, então B; ou A ou C; negação de C; logo, B. Ora a retórica não pode explicar porque aparece C, ou seja, como C deriva daquelas premissas. Não sendo esse o seu objectivo, não o pode fazer. Porque "carga-de-água" o faria? O orador pode querer explicar outras coisas. Pode pegar num pedaço de discurso que tenha aquela forma e tentar explicar porque foi ou não convincente em tal situação. A lógica não tem nada a ver com isso. Se perguntamos "deriva esta afirmação daquelas afirmações?", estamos no domínio da lógica; se não, não!
Segunda confusão (que acompanha a anterior). Existem perguntas sobre valores ou, em geral, sobre as nossas premissas básicas (princípios) a que respondemos com "bases incertas". Se discutimos tais respostas, estamos no terreno fluido do plausível e não no terreno do que pode ser demonstrado. Conclusão: não estamos no terreno da lógica, que «só procede do que é seguro ao que ela assegura por passos seguros». Tolices inseguras! Se discutimos, derivamos afirmações de afirmações. Certo? As afirmações são bem ou mal derivadas. Certo? E foram de facto bem ou mal derivadas? A lógica o dirá e só a lógica. Quanto aos "motivos" que nos fazem aderir a uma afirmação, bem ou mal derivada, a psicologia, a sociologia, a retórica e outras "coisas" o dirão.
Estamos entendidos? A lógica trata da validade da argumentação e é insubstituível nesse papel. Isto é claro. Certo? Infelizmente não é claro para muitos alunos. À pergunta "O que é a lógica?", respondem: "A lógica é a ciência da linguagem e do pensamento". E não lhes dou zero; apenas um... incompleto! Infelizmente, nem sequer se trata de um daqueles casos de «desejo de salvar alguns alunos e obter uma percentagem não catastrófica de "positivas"»; terei dado alguns valores ao aluno por ele ter conseguido a admirável e cada vez mais rara proeza de escrever uma frase completa e sem erros de ortografia. Ele tem cotação na pergunta porque repete bem algumas daquelas tolices que se vêem nos manuais (e, vá lá, admiro aqueles que não dizem que a lógica é a arte de pensar).
F.Lopes