Ciência: continuidade ou ruptura?

A investigação científica passa pela 'ultrapassagem de limites'. Isto significa que não há investigação sem interferência de obstáculos - obstáculos epistemológicos. Estes não são propriamente as dificuldades próprias da complexidade do objecto que se está a investigar; também não são propriamente os limites conceptuais e técnicos dos investigadores; eles são fundamentalmente elementos internos, isto é inerentes ao cientista, que atrasam, dificultam, travam, impedem, desvirtuam a investigação científica. O racionalismo bachelardiano mostra que o próprio acto de conhecer está eivado de impurezas, de imensos segredos que escapam ao controlo do cientista, provocando riscos, cujos se devem fundamentalmente a que, no acto de conhecer, o cientista coloca mais de si próprio do que vulgarmente ele pensa. Daí a necessidade de uma psicanálise do inconsciente do cientista, isto é, a necessidade de mostrar a existência de uma filosofia nocturna (filosofia espontânea dos cientistas, em linguagem de Louis Althousser), encontrar a acção dos valores inconscientes, das íntimas representações filosóficas, que de um modo mais ou menos disfarçado e inconsciente incorrem na própria base do conhecimento científico. Um obstáculo epistemológico designa os efeitos, na prática do cientista, da relação imaginária que o cientista mantém com ela mesma.
Segundo Bachelard, há descontinuidade epistemológica ou ruptura com o conhecimento vulgar - senso comum , com a filosofia que anteriormente tratava desses problemas, com as categorias, evidências, explicações anteriormente concebidas e que se demonstram serem de ordem puramente ideológica. Bachelard insurge-se contra as pretensas continuidades do conhecimento vulgar e do conhecimento científico, defendendo que este se desenvolve sempre contra aquele, contra os dados do senso comum e do conhecimento sensível e que a passagem de um ao outro exige, para poder ser pensada, os conceitos de obstáculo e ruptura epistemológicas. A opinião constitui um entrave ao desenvolvimento da ciência. Recorde-se o exemplo de Galileu e o conjunto das objecções de senso comum que lhe foram despejadas para negar a possibilidade científica do heliocentrismo: a terra não se move, porque eu a vejo parada; o sol não está parado, porque eu vejo-o mover-se; se a terra estivesse em movimento nós seríamos lançados no espaço, as aves nunca encontrariam os seus ninhos, nenhum objecto cairia verticalmente junto de nós, as nuvens ficariam para trás, etc. o que náo acontece. Etc. O espírito conhece sempre contra o seu passado, contra os seus preconceitos, contra o seu conservadorismo incorrigível (no plano do conhecimento e da educação). O senso comum conhece passivamente, sem crítica, não constrói o real, pois as coisas são-lhe dadas. A experiência inicial é alheia à crítica, pois inspira-se pelo sensualismo e pelo entusiasmo natural. A observação, que precede a experiência científica, não pode ser a simples recolha passiva de dados: ela implica um conjunto de precauções que levam a reflectir antes de olhar, que modificam a primeira visão: a observação é toda ela polémica, transcendendo o dado imediato, implicando reflexão, demonstração, reconstrução. O facto científico constroi-se: nenhum facto se deixa apreender tal como nos aparece espontaneamente.
Exemplos: quando se dizia que a terra era uma espécie de pedra redonda, era porque a vemos chata e o horizonte se apresenta circular. Do mesmo modo se inferia um pretenso movimento circular do sol a partir da observação ingénua que se pode diariamente fazer da sua marcha.
Ruptura epistemológica (corte epistemológico) é o efeito de ruptura pelo qual se inicia um novo campo científico ultrapassando o campo ideológico anterior. É o início do processo de aparecimento de uma nova disciplina científica. Sendo assim, cada uma das disciplinas científicas surgiu historicamente contra o senso comum ou contra a filosofia que a subsume, como são os casos da filosofia aristotélica, no que diz respeito à física, e da alquimia, no que diz respeito à química, por exemplo.

in: http://www.prof2000.pt/users/baratoni/Solucoes%20Bachelard.htm