A psicogénese dos conhecimentos e a sua significação Epistemológica - Jean Piaget

Cinquenta anos de experiências fizeram-nos saber que não existem conhecimentos resultantes de um registo simples de observações, sem uma estruturação devida às actividades do sujeito. Mas também não existem (no homem) estruturas cognitivas a priori ou inatas: só o funcionamento da inteligência é hereditário e só engendra estruturas por uma organização de acções sucessivas exercidas sobre objectos. Daqui resulta que uma epistemologia conforme com os dados da psicogénese não poderia ser nem empirista nem pré-formista, mas consiste apenas num constructivismo, com a elaboração contínua de operações e de estruturas novas. O problema central é, então, compreender como se efectuam estas criações e por que razão, visto resultarem de construções não pré-determinadas, se podem tomar logicamente necessárias, durante o desenvolvimento.
1. Empirismo
 (...) Com efeito, nenhum conhecimento se deve apenas às percepções, porque elas são sempre dirigidas e enquadradas por esquemas de acções. 0 conhecimento procede, pois, da acção e toda a acção que se repita ou se generalize por aplicação a novos objectos engendra, por isso mesmo, um «esquema», quer dizer, uma espécie de conceito práxico. A ligação fundamental constitutiva. de todo o conhecimento não é, pois, uma simples «associação» entre objectos, porque esta noção negligencia a parte de actividade devida ao sujeito, mas é a «assimilação» dos objectos a esquemas deste sujeito. Aliás, este processo prolonga as diversas formas de «assimilações» biológicas, cuja assimilação cognitiva é um caso particular enquanto processo funcional de integração. Por outro lado, quando os objectos são assimilados aos esquemas de acção, há obrigação de uma «acomodação» às particularidades destes objectos (cf. os «acomodados» fenotípicos em biologia), e esta acomodação resulta, com efeito, de dados exteriores, logo, da experiência. Portanto, é este mecanismo exógeno que converge com o que existe de válido na tese empirista, mas (e esta reserva é essencial) a acomodação não existe no estado «puro» ou isolado, já que é sempre a acomodação de um esquema de assimilação: portanto, é esta que continua a ser o motor do acto cognitivo.
Estes mecanismos, visíveis desde o nascimento, são inteiramente gerais e encontram-se nos diferentes níveis do pensamento científico. 0 papel da assimilação reconhece-se porque um «observável» ou um «facto» são sempre e desde o princípio, da utilização de quadros lógico-matemáticos tais como o estabelecimento de relações ou de correspondência, de vizinhanças ou de separações, das quantificações conducentes, mais ou menos, às medidas, em suma, necessita de toda urna conceptualização devida ao sujeito e que exclui a existência de «factos» puros, enquanto inteiramente exteriores às actividades deste sujeito, e isso tanto mais na medida em que este último deve fazer variar estes fenómenos para os assimilar.
Quanto aos processos de aprendizagem, invocados pelos empiristas behavioristas em favor das suas teses, Inheider, Sinclair e Bovet mostraram que eles não explicam o desenvolvimento cognitivo, mas são submetidos às suas leis, já que um estímulo só age como tal a um certo nível de «competência» (outra noção biológica, vizinha da assimilação). Numa palavra, a acção de um estímulo supõe a presença de um esquema, o qual é a verdadeira fonte da resposta (o que inverte o esquema SR ou o torna simétrico). Também Pribram pôs em evidência uma selecção dos inputs desde os níveis neurológicos.
2. A pré-formação
(...) Atendo-nos aos factos da psicogénese, verificamos, em primeiro lugar, a existência de estádios que parecem atestar uma construção contínua. Em primeiro lugar, um período sensoriomotor, anterior à linguagem, vê constituir-se uma lógica das acções (relações de ordem, ajustamento dos esquemas, intersecções, estabelecimento de correspondências, etc.), fecunda em descobertas e até em invenções (objectos permanentes, organização do espaço, da causalidade, etc.). Entre os 2 e os 7 anos, há conceptualizações das acções, logo, representações com descoberta de funções entre as co-variações dos fenómenos, identidades, etc., mas ainda sem operações reversíveis nem conservações. Estas duas últimas constituem-se ao nível das operações concretas (7-10 anos), com «agrupamentos» logicamente estruturados, mas ainda ligados à manipulação dos objectos. Enfim, cerca dos 11-12anos, constitui-se uma lógica proposicional hipotético-dedutiva, com combinatória, «conjunto das partes», grupos de quaternalidade, etc.
(...) Isto conduz-nos à criança, já que em alguns anos ela reconstroi espontaneamente as operações e estruturas de base de natureza lógico-matemática, fora das quais não compreenderia nada do que a escolha lhe ensinará. É assim que, depois do longo período pré-operatório em que lhe faltam ainda estes instrumentos cognitivos, reinventa para si, cerca dos 7 anos, a reversibilidade, a transitividade, a recursividade, a reciprocidade das relações, a inclusão das classes, a conservação dos conjuntos numéricos, a medida, a organização das referências espaciais (coordenadas), os morfismos e certos funetores, etc., dito de outra maneira, todas as bases da lógica e das matemáticas. Se estas fossem préformadas, isso significaria, pois, que o bebé, ao nascer, já possuiria virtualmente tudo o que Galois, Cantor, Hilbert, Bourbaki ou MacLane puderam actualizar depois. (...) Numa palavra, as teorias da préformação dos conhecimentos parecem-nos tão desprovidas de verdade concreta como as interpretações empíricas, porque as estruturas lógico-matemáticas, na sua infinidade, não são localizáveis no ponto de origem, nem nos objectos nem no sujeito. Portanto, só é aceitável um constructivismo, mas cuja pesada tarefa é explicar ao mesmo tempo o mecanismo de formação das novidades e a característica de necessidade lógica que adquirem durante o desenvolvimento.
3. A abstracção reflexiva
(...) Com efeito, podemos distinguir três espécies diferentes de abstracções: 1) Chamemos «abstracção empírica» àquela que se debruça sobre objectos físicos exteriores ao sujeito. 2) A abstracção lógico-matemática será chamada, pelo contrário, «reflexiva» porque procede a partir das acções e das operações do sujeito. Até o é num duplo sentido, de onde se originam dois processos solidários mas distintos o de uma projecção sobre um plano superior, daquilo que é extraído do nível inferior, então trata-se de um «reflexo»; e o de uma «reflexão» enquanto reorganização sobre o novo plano - esta reorganização só utiliza, primeiro, a título instrumental as operações extraídas do nível precedente, mas que visam (mesmo se este objectivo permanece em parte inconsciente) a sua coordenação numa totalidade nova. 3) Falaremos, enfim, de «abstracção reflectida» ou de «pensamento reflexivo» para designar a tematização do que continuava operacional ou instrumental em (2); a fase (3) constitui assim a culminação natural de (2), mas supõe a mais um jogo de comparações explícitas de um nível superior às «reflexões» em acção nas utilizações instrumentais e nas construções em devir de (2). Portanto, é importante distinguir as fases de abstracções reflexivas que intervêm em toda a construção quando se trata da solução de problemas novos e a abstracção reflectida que lhe acrescenta um sistema de correspondências explícitas entre as operações assim tematizadas.
(...)
4. A generalização construtiva
(...) O primeiro problema a resolver é então o da construção dos patamares sucessivos, que nos demos a nós próprios nos parágrafos precedentes: ora, cada um deles resulta de uma assimilação ou de uma operação nova destinada a preencher uma lacuna do nível anterior e actualizando, portanto, uma possibilidade aberta por este. Um bom exemplo é o da passagem da acção à representação graças à formação da função semiótica. A assimilação sensorio-motora consiste apenas em assimilar objectos a esquemas de acção, enquanto a assimilação representativa assimila os objectos uns aos outros, de onde aparece a constituição de esquemas conceptuais. Ora esta nova forma de assimilação era já virtual na forma sensorio-motora, já que esta incidia sobre múltiplos objectos, mas sucessivos: bastaria, então, completar estas assimilações sucessivas por um acto simultâneo de estabelecimento de correspondência para passar ao patamar seguinte. Mas um tal acto implica a evocação de objectos actualmente não percebidos, e esta evocação necessita da formação de um instrumento específico que é a função semiótica (imitações diferidas, jogo simbólico, imagem mental que é uma imitação interiorizada, linguagem gestual, etc., além da linguagem vocal e aprendida). (...) Seria fácil, também, mostrar que as novidades próprias dos níveis das operações concretas, depois hipotético-dedutivas, procedem igualmente de generalizações completivas. É assim que as operações concretas devem os seus novos poderes à conquista da reversibilidade, já preparada pela transponibilidadeo pré-operatória, mas que exige ainda uma regulação sistemática das afirmações e das negações, dito de outra maneira, uma auto-regulação sistemática das afirmações e das negações, dito de outra maneira, uma auto-regulação, aliás, sempre em acção no seio das generalizações construtivas (e às quais voltaremos no § 6). Quanto às operações hipotético-dedutivas, tomam-se possíveis pela passagem das estruturas de «agrupamentos» sem combinatória e cujos elementos são intervalados às dos «conjuntos de partes» com combinatória e generalizações das partições.'
(...)
5. As raízes biológicas do conhecimento
0 que vimos até aqui abona em favor de um constructivismo sistemático. Mas não deixa de ser verdade que as suas fontes devem ser procuradas no plano do organismo, já que uma sucessão de construções não comportaria um começo absoluto. Mas antes de propor uma solução, convém primeiro perguntarmo-nos o que significaria biologicamente uma solução préformista ou, dito de outra maneira, em que é que se tornaria o apriorismo uma vez traduzido em termos de inatismo.
Ora um grande autor mostrou-o com toda a clareza: é K. Lorenz, que se julga kantiano e que permanece partidário de uma origem hereditária das grandes estruturas da razão, enquanto preliminares a toda a aquisição extraída da experiência. Mas, sendo biólogo, Lorenz sabe muito bem que, salvo a hereditariedade «geral» comum a todos os seres vivos ou a grandes conjuntos, a hereditariedade específica varia de uma espécie para outra: a do homem, por exemplo, continua especial para a nossa espécie particular. Daí resulta que, muito honestamente, Lorenz embora acreditando na característica inata, enquanto preliminar, das nossas grandes categorias de pensamento, não possa, por este mesmo facto, afirmar a sua generalidade: de onde surge a sua fórmula muito instrutiva segundo a qual os a priori da razão consistiriam simplesmente em «innate working hypotheses». (...)
(...) Mas o que os inatistas parecem esquecer de uma forma surpreendente é que existe um mecanismo tão geral como a hereditariedade e que, em certo sentido, a dirige: é a auto-regulação, que desempenha um papel a todos os níveis, desde o genoma, e um papel tanto mais importante quanto mais nos aproximamos dos níveis superiores e do comportamento. (...)
6. Necessidade e equilibração
(...) Naturalmente, a hipótese será que esta necessidade progressiva resulta das auto-regulações e se traduz por uma equilibração igualmente progressiva das estruturas cognitivas, provindo, então, a necessidade do seu «fechamento».
(...) Desde o nível sensorio-motor, é evidente que um esquema de acções aplicado a novos objectos deve diferenciar-se em função das suas propriedades, de onde surge um equilíbrio tendendo, ao mesmo tempo, a conservar o esquema e a ter em conta as propriedades do objecto, mas podendo, se estas forem inesperadas e interessantes, arrastar a formação de um sub-esquema ou mesmo de um novo esquema, que necessitarão então da sua própria equilibração. Mas estes mecanismos funcionais encontram-se a todos os níveis. Mesmo na ciência, a assimilação das velocidades lineares e angulares comporta, ao mesmo tempo, uma assimilação quanto às relações espácio4emporais comuns a uma acomodação a estas situações distintas; também a incorporação dos sistemas abertos nos sistemas termodinâmicos gerais exige tanto uma acomodação diferenciadora como assimilações.
(...) Vemos então em que é que a equilibração conduz à necessidade lógica: a coerência progressiva que o sujeito procura e atinge finalmente provém, primeiro, de uma simples regulação causal de acções cujos resultados se revelam, posteriormente, compatíveis ou contraditórios, depois chega a uma compreensão de ligações ou implicações tomadas deductíveis e, por isso, necessárias.
A terceira forma de equilibração apoia-se na precedente, mas distingue-se dela pela construção de um novo sistema total: é aquela que necessita do próprio processo de diferenciação de novos subsistemas, a qual exige então uma diligência compensatória de integração numa nova totalidade. Aparentemente, existe aqui um simples balanço de forças opostas, a diferenciação que ameaça a unidade do todo e a integração que põe em perigo as distinções necessárias. De facto, a originalidade do equilíbrio cognitivo (e, aliás, já dos sistemas orgânicos) é assegurar, pelo contrário, o enriquecimento do todo em função da importância das suas diferenciações e assegurar a multiplicação destas (e não apenas a sua coerência) em função das variações intrínsecas (ou tornadas tais) da totalidade nas suas características próprias. Aqui, de novo, vemos, portanto, claramente, as relações entre a equilibração e a necessidade lógica progressiva, a necessidade do terminus ad quem que resulta da integração final ou «fechamento» dos sistemas.
Numa palavra, a equilibração cognitiva é, portanto, «ampliadora», isto é, os desequilíbrios não conduzem a um retorno à forma anterior de equilíbrio, mas a uma forma melhor caracterizada pelo aumento das dependências mútuas ou implicações necessárias. (...)

(In Jean Piaget e Noam Chomsky (org.), Teorias da Linguagem, Teorias da Aprendizagem, trad. port. de Rui Pacheco , Lisboa: ed. 70, 1985, pp. 51-62)