Sentidos - uma leitura do mito de Adão.

O Homem é o único ser que tem consciência da sua existência, que sabe da morte, que justifica o injustificável, procurando sempre uma “zona de segurança” onde o mundo faça sentido. Por isso mesmo, ele é liberdade e não absoluto: joga com o tempo e com as possibilidades de realização na medida em que se distancia de si, consciente, tem na interrogação a sua verdadeira matriz: encontra-se situado entre a sua condição e o possível, entre a ignorância e o conhecimento. O mito de Adão traz, no sincretismo da sua linguagem, a realidade da inocência e do saber, de uma imortalidade “insana”, por um lado e simultaneamente a justificação da mortalidade.
Adão é o símbolo da humanidade, do Homem, considerados como origem do "mal". Antes de ceder à “tentação”, ou melhor, antes da própria tentação, era supostamente um ser inocente (não significa necessariamente bom). Tradicionalmente considera-se que no mito de Adão se justifica a origem do mal (com Adão como autor) no seio do bem (a criação de Deus), estando portanto com o homem a responsabilidade da cisão temporal que cria o antes e o depois: antes a inocência, depois o mal; antes a eternidade, depois a morte. Não se trata verdadeiramente de um tempo: este “acontecimento” é um instante de perda de inocência, um momento que marca o sem regresso que ou viola as leis do tempo circular mítico (pouco provável) ou define o homem como um ser "bom e mau" o que na estrutura antropológica levanta alguns problemas: o bem surge no absoluto; o mal, na liberdade enquanto fatalidade - "estou condenado a ser livre", Sartre, (1943). Como mito, reúne em si toda a humanidade, Adão será o paradigma.
Só que a história assim não está bem contada nem completa… faltam elementos-chave: Eva e a serpente. Eva sugere a tentação e o momento da cedência. Quanto à serpente, em várias representações do tempo cíclico (eterno-retorno) surge mordendo a própria cauda… um tempo antes do tempo, atrás do tempo: se assim for então não é Eva a origem do mal: Eva e Adão encontram o mal: como podemos entender então que o mal tenha surgido no mundo? Que, por um lado, o Homem seja o seu autor e que, por outro, haja uma exterioridade simbolizada na serpente? Como entender a proibição que Deus faz a Adão e a Eva se estes eram inocentes? Será o saber o fruto da árvore da vida? Talvez a solução possa passar pelo tempo: como "ser criado" está vedada ao homem a eternidade mas não a tendência e o desejo para a infinitude. Assim Adão e Eva como que se tornam responsáveis por um mal que lhes é anterior e, de início, estranho: assumem o mal como seu num acto de livre arbítrio.
Há o desejo humano de ser igual a "Deus", recusamos ser criaturas. Ao transgredir a “lei”, o homem quebra a ordem cósmica, o mundo natural e inocente e o mal encontra terreno fértil: expande-se no mundo. O percurso humano já não conduz à vida eterna mas à morte. Acabou o tempo da ignorância, começa o tempo das possibilidades, o tempo do conhecimento enquanto revelação.
F.Lopes
P.S. Este texto surge a partir da leitura de vários artigos, com destaque para "O DISCURSO POÉTICO - METÁFORA E INTERTEXTUALIDADE" de Ivone da Silva Rebello e "CRISTIANISMO E IDENTIDADE PESSOAL" do Professor Doutor Manuel Sumares.