Vida artifical - Vem aí um universo infinito de questões!

É o homem a fazer de Deus ou não é? É vida artificial, ou também não é? É a porta para uma revolução industrial, ou nem tanto? Horas depois do instituto do cientista Craig Venter, nos Estados Unidos, ter anunciado a criação da primeira célula sintética, era mais fácil perceber a descoberta do que o seu significado. Entre os cientistas não há consenso sobre se a primeira célula sintética significa a criação da primeira forma de vida artificial, do zero. O Vaticano, pressionado, respondeu com cautela. E as aplicações, de um novo mecanismo para capturar dióxido de carbono da atmosfera ou descobrir uma vacina para a sida estão aberto, e nenhuma deverá ser anunciada a curto prazo. Mas a realidade é que também é difícil saber o que esperar do homem que sequenciou o genoma em três anos (quando o projecto público o fez em dez) e em 15 anos conseguiu reunir 40 milhões de euros, em financiamento praticamente privado, para derrubar mais um impossível.
"Diria que as primeiras aplicações vão surgir nos próximos cinco a dez anos, mas o Craig Venter é uma pessoa muito dinâmica", diz ao i João Ferreira, especialista em biologia molecular do Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa.
As mais promissoras parecem-lhe para já as que foram apresentadas por Craig Venter no anúncio deste "avanço tecnológico", como prefere chamar-lhe: bactérias com missões predeterminadas como capturar o CO2 da atmosfera ou limpar marés negras ou a criação de novas algas, que também são organismos simples e segundo foi agora provado, facilmente reprogramáveis e que poderão tornar mais eficaz a produção de biocombustíveis. Na área da biomedicina, as promessas são vertiginosas: encontrar uma vacina para a sida é uma delas. Claudio Sunkel, membro da Organização Molecular de Biologia e investigador do Instituto de Biologia Molecular e Celular explica o processo: em vez de utilizar o vírus para activar a resposta imunológica do organismo, redesenhar-se-ia o genoma de uma nova bactéria nova com as proteínas suficientes para cumprir essa tarefa, sem risco. No caso das vacinas da gripe sazonal, num contrato já firmado com a Novartis, Craig Venter acredita que pode reduzir o tempo de produção em 99%. Para já, e antes de produzir os biliões que um dos cientistas mais polémicos dos anos últimos anos calculam que nasçam de uma revolução industrial feita por bactérias à medida, Sunkel vê uma dificuldade a curto prazo: não se sabe como estes agentes se comportam fora do laboratório. Já o problema do bioterrorismo é apenas paralelo, acreditam: "Quando muito será facilitado", diz Jão Ferreira.
A par das aplicações, está o contributo desta célula sintética para a ciência fundamental: é mais uma peça para compreender os ingredientes necessários à existência de vida e para compreender as bases da organização biológica. Agora, que não se tratou da primeira forma vida artificial, parece ser consenso. "É incapaz de ser impossível de fazer. A formação do zero não existe na natureza", diz Claudio Sunkel. João Ferreira também não reconhece esse lado mais mediático desta célula baptizada de Cynhtia, com 70 micrómetros de diâmetro e que parece um ovo estrelado com a gema azul. "É uma conquista tecnológica, produto da criatividade humana", diz.
GOD 2.0 Ontem o "The Guardian" falava num deus de nova geração: Graig Venter, uma analogia irresístivel mesmo depois de o cientista ter sublinhado que não tinha feito vida do zero - a célula que recebeu o ADN elaborado em computador tinha as suas própria estrutura, lípidos e gorduras fundamentais para vida. Mas a realidade, argumenta um lado do debate, é que depois do transplante de ADN ter funcionado, os milhões de novas células em que se dividiu esta célula-mãe já fazem parte de uma nova espécie artificial. À BBC, Venter disse que a pergunta sobre a substituição de deus surge "sempre que há um avanço científico relacionado com a biologia. Tem sido sempre um objectivo da humanidade tentar controlar a natureza, foi assim que nasceu a agricultura e a domesticação dos animais". Mas houve outros cientistas a atirar a discussão para um lado mais filosófico. Art Caplan, conhecido professor de Bioética da Universidade da Pensilvânia anteviu em declarações à "Nature" um "terramoto metafísico". Julian Savulescu, professora de Ética de Oxford, acrescentou que estão abertas "as portas mais profundas na história da humanidade. É um passo na direcção da criação de seres vivos com capacidades que poderiam nunca evoluir de forma natural".
O carimbo do Vaticano chegou a meio do dia de ontem, depois de umas primeiras declarações mais negativas do presidente da comissão para os assuntos jurídicos da conferencia episcopal italiana - antes dea Santa Sé se pronunciar, Domenico Mogavero falou do potencial da descoberta se transformar num "desconhecido devastador". Rino Fisichella, responsável pelas questões de biotética no Vaticano, acabou por pôr água na fervura: "É uma grande descoberta científica. Agora precisamos de perceber como é que vai ser implementada no futuro. Se tivermos a certeza de que é para o bem de todos, do homem e do ambiente, manteremos esta opinião. Se por outro lado esta descoberta atacar a dignidade e o respeito pela vida humana, a nossa opinião mudará." Uma das primeiras vozes a manifestar algumas dúvidas foi Barack Obama: pediu à comissão para o estudo das questões de biomédicas da Casa Branca para investigarem durante os próximos seis meses o potencial e os riscos do futuro aberto pela Cynthia.
Há revolução na Biologia Sintética: o anúncio da criação de um novo genoma poderá acabar por desembocar na criação de organismos artificiais programados; ao mesmo tempo que traz esperança, transporta também muitos medos diante da falta de uma sólida aboradagem ética e da ausência de limites jurídicos. Nenhum governo ou organismo internacional se preocupou ainda em regulamentar e limitar a criação de novos organismos vivos. Se a questão da clonagem, que é mais antiga, já é suficientemente polémica na sociedade, cremos que este novo universo, agora a abrir-se, vai levantar muitas outras nada menores. Craig Venter e o seu laboratório terão criado um novo monopólio, o da vida?
Jornal i - Publicado em 22 de Maio de 2010