BREVE REFLEXÃO A PROPÓSITO DAS REPÚBLICAS

 Daqui a uns anos, talvez os historiadores, ao debruçarem-se sobre os acontecimentos que marcaram a nossa vida colectiva neste princípio de século, entre si acordem perspectivá-los numa temática intitulada “a mentira na verdade política”.
E nem valerá a pena, parece, estar a demonstrar, com meia dúzia de exemplos, as razões de tal opção. De facto, a propósito da denominada crise (económica, social, institucional) mas já muito antes dela, se juntarmos falseadoras promessas eleitorais com segredos políticos só desvendados pelos jornais, pormenores de vida ocultados com escabrosas cumplicidades de quem menos se esperaria mantê-las, cínicas justificações para a frente com hipócritas desculpas para trás, de tudo encontramos numa amálgama não raro polvilhada de ridículo. Os pilares da certeza e eficácia do Direito – que o mesmo é dizer os pressupostos da liberdade numa sociedade democrática – passaram a ser encarados com maior dúvida, se não com suspeição, à medida foram acumulando as denúncias, as contradições, os jogos de escárnio e maldizer. Paradoxalmente, ou talvez não, tudo isto coincidindo com o tempo em que a República considera merecer comemorar o centenário que leva de vida em Portugal.
Falar do regime que, em 1910, substituiu entre nós a monarquia – e recorde-se que, tirando a bandeira, o hino e um Presidente em lugar de Rei, não era propriamente fotocópia do que hoje entre nós vigora – não é de todo despropositado. Naquela época, até surpreendemos os estrangeiros como espécie de raridade inesperada: imagine-se povo tão mísero e dependente como éramos escolher um modelo de progressismo filosófico numa Europa onde só a França era republicana e tudo o resto uma colorida geografia de cabeças coroadas. Tal salto qualitativo, porém, terá sido excessivo para as rústicas aptidões do povo vulgar. Tão fácil foi fazer o Rei embarcar para Inglaterra como impossível se tornaria consolidar uma transformação efectiva do país nos anos subsequentes. E quando em Maio de 1926, a tropa se sublevou e desceu de Braga a Lisboa para terminar com o caos reinante e impor uma ditadura, as triunfantes elites laicas de 1910 já não tinham força para resistir, nem coerência para continuar nem, sobretudo, legitimidade respeitável para alegar em sua defesa.
Assim acabou sem heróis ou canhões com que começara, a República de 1910, chamada a Primeira República. Ora, por esses dias, um tal António de Oliveira Salazar era, apenas, um obscuro professor em Coimbra; não foi ele que deitou a República abaixo certamente. Além disso, o futuro Estado Novo, quando se erigiu, foi para substituir a notória incapacidade dos militares para a política e preencher o vazio deixado pela herança sem testamento da defunta República. Daqui nasce a seguinte questão:
Se a Primeira República acaba com o golpe de 28 de Maio de 1926; se o regime do Estado Novo nunca ressuscitou a monarquia, antes continuou a denominar-se como República, com a mesma bandeira, hino e Chefe de Estado eleito, cronologicamente não deveremos denominar como Segunda República o período que decorre de 1933 (data da constituição fundadora do Estado Novo) até Abril de 1974?
Acontece que, também, não é costume ver alguém, seja académico ou responsável político, falar da República agora, como sendo a Terceira. Forçosamente a terminologia, aqui, encerra obscuras razões, porventura pertinentes. Mas mais parece que um incómodo muro de silêncio rodeia o assunto. Até mesmo em termos de semântica, temos que convir que não há terceira coisa se não tiver havido segunda. A menos que a segunda não deva ser considerada como tal, apesar das aparências, mas como mera perversão, ou equívoco, ou usurpação. Então voltando à realidade concreta, a actual República é que seria a segunda, como directa herdeira e continuadora daquela outra Primeira. E, no meio, durante quarenta e um anos consecutivos, o que foi nunca existiu, apenas pareceu ser.
As comemorações da Primeira República, tanto quanto tenho visto e pensado, vão todas por este discurso de, por um lado, glorificar o sentido da efeméride, por outro, demonstrar a consanguinidade da República de hoje com aquela da pós-monarquia. Temo que seja uma via pouco rigorosa de análise e de pedagogia cívica e que, politicamente, só poderá trazer à discussão analogias e interrogações melindrosas, repercutindo o significado da queda da Primeira República nas condições objectivas que vivemos, hoje, sob a égide da actual República, a Segunda digna desse nome, pelos vistos… ou não?
Para citar Hannah Arendt, “a história até pode ser destruída. Mas não pode ser substituída”.

Dr.Victor Cepeda Mangerão

(Advogado)