Hannah Arendt - Uma perspectiva feminina (do espaço público)

O espaço público, bem como as formas de a ele ter acesso e participar, têm sido modulados a partir de um entendimento predominantemente masculino. Na verdade, a questão de género está ausente da maior parte das reflexões teóricas que consideramos referenciais acerca do espaço público,(...).
Como ponto de partida, admite-se a possibilidade de a conceptualização de domínio público presente na obra de Hannah Arendt consubstanciar, pelo menos indirectamente, uma visão feminina da esfera de visibilidade. Arendt lança as bases de uma nova teoria política e pode questionar-se se a arquitectura deste edifício, pelas categorias, argumentos, experiências históricas e definições que a suportam, legitima uma interpretação especificamente feminina ou no mínimo contrastiva do espaço público e, por maioria de razão, da política e do político.
Poderemos indagar, para começar, se Arendt sequer colocou a questão da condição feminina no plano da sua história pessoal. A entrevista que concedeu a Günter Gaus, difundida a 28 de Outubro de 1964, é a este respeito elucidativa e de certa forma decepcionante. Gaus inicia o diálogo esclarecendo que Arendt é a primeira mulher a participar na série por si realizada, comentando que ela exerce uma “profissão muito masculina”, a filosofia. Adivinha-se a primeira pergunta: o seu lugar no “círculo dos filósofos” não será insólito pelo facto de ser mulher? (Arendt, 2001, 11). A resposta de Arendt inicia-se com uma recusa desta circunscrição – “a minha profissão, se assim se pode chamar, é a teoria política”. E prossegue:
“Você diz que a filosofia é, de um modo geral, uma profissão masculina. Sem dúvida, mas isso não significa que um tal estado de facto subsista, um dia poderá perfeitamente existir uma mulher que seja filósofa...” (Ibidem, 12)
Questionada sobre o problema da emancipação das mulheres, Arendt admite que tal é: “um problema que se põe sempre. Eu agora vou-lhe parecer muito antiquada. Semprei pensei que há certas ocupações que não convêm às mulheres, que não condizem com elas, por assim dizer. Não fica bem a uma mulher dar ordens. E ela não deve pôr-se em situação de ter de o fazer, se quiser continuar a ser feminina. Se tenho ou não razão acerca deste ponto, isso não sei. Por mim, sempre vivi segundo esse critério, mais ou menos inconscientemente ou, melhor, mais ou menos conscientemente. Pessoalmente, para mim, não se tratou de um problema. Para dizer as coisas com simplicidade, sempre fiz aquilo que gostava de fazer” (Ibidem, 13). Um pouco mais à frente:
“Também me perguntou o que pensava do efeito do meu trabalho sobre os outros. Se me permite ser um tanto irónica, eu diria que se trata de uma pergunta masculina. Os homens querem sempre ser o mais influentes possível” (Ibidem,14). Não obstante a eventual ironia escondida sob a capa destas palavras, Arendt admite perfilhar um posicionamento “antiquado” na esfera pessoal e manifesta algumas ideias gerais, préconcebidas, sobre o papel e a identidade de género. E o que se passou no plano da intervenção públicopolítica?
Embora o seu pensamento e acção tenham sido grandemente tocados pela influência de filósofos como Martin Heidegger e Karl Jaspers ou políticos como Heinrich Blücher (o seu segundo marido) e Kurt Blumenfeld, pelo menos três mulheres ocuparam um espaço decisivo na sua vida e obra. No entanto, das biografias ou perfis dedicados a Rahel Varnhagen 1 , Rosa Luxemburgo e Isac Dinesen (pseudónimo da Baronesa de Blixen) 2 não emana quaisquer questionamento ou preocupação em torno da identidade política feminina. Nestes textos encontram-se, sim, reflexões sobre a identidade judaica, a revolução e o significado político do acto de contar histórias. “Hannah Arendt pensava mais como Judia do que como uma mulher”, escreve a sua biógrafa Elisabeth YoungBruehl (1996, 317).
Não obstante estar consciente do desenvolvimento do movimento feminista, não reagiu a ele publicamente. YoungBruehl assevera que Arendt não se via como feminista, embora protestasse quando recebia um tratamento excepcional pelo simples facto de ser uma mulher , e manifestava um profundo cepticismo em relação a um movimento político concentrado num tema singular e, em particular, que discutia a distinção que ela traçou entre público e privado (Ibidem, 307). Não se ignora que estes aspectos obstam ao intuito de abordar a obra arendtiana de um ponto de vista feminino e, em particular, de aventurar a hipótese de a conceptualização de espaço público que aporta conter elementos de distinção no que se refere a uma tematização de género 3 . Indubitavelmente a articulação entre a obra arendtiana como um todo e o feminismo tem sido objecto de acesa controvérsia – reflectida em conferências e publicações especializadas que têm sobretudo como ancoragem teórica a ciência política. Arendt exerce uma espécie de magnestismo sobre as teóricas políticas do feminismo norteamericano e a sua obra enquadra-se na actual luta da corrente feminista por uma direcção teórica (Ibidem, 308).

Carla Martins - ULHT