Bom ano lectivo 2010/2011

No passado ano lectivo, trabalhei com as turmas do 11º ano. Este ano de 2010/2011 coube-me o 10.º ano. Se a exposição continua a ser um dos métodos mais eficientes para atingir os objectivos da nossa disciplina, creio que neste começo de aprendizagem devemos apostar mais na motivação do que na erudição. Motivar passa por pôr a filosofia em prática, trabalhando textos e problemas que sejam ao mesmo tempo acessíveis, apelativos, ricos e rigorosos; problemas que interpelem cada um de nós, que vão ao encontro dos interesses e temas familiares : liberdade e livre arbítrio; definição do bem e do mal; justiça; fundamentação do poder e da autoridade, etc.
Os textos podem servir-nos de duas maneiras: como pontos de partida para o contacto com problemas — textos "psicadélicos", quer dizer, que abram a mente — e como teorias de referência acerca desses problemas, que constituem respostas histórica e filosoficamente relevantes e que, neste caso, devem ser incluídos em conjuntos de teorias acerca do mesmo problema, como meio de mostrar que a discussão está aberta, e que pode ser feita de forma rigorosa.
Deveríamos olhar mais de perto para o programa. A vagueza deste é ao mesmo tempo repulsiva, assustadora e exasperante, por um lado, e acolhedora, por outro, no sentido em que nos deixa a porta aberta à iniciativa e não prescreve metodologias rígidas de abordagem aos temas. Assim sendo, temos liberdade para planificar algo inovador ou, pelo menos, adequado à nossa realidade. O senão é que isso dá muito trabalho e exige tempo de preparação. Vamos fazer por isso.
A mesma vagueza do programa e a sua estruturação com base em temas sugere que a filosofia seja desenvolvida como prática do pensamento crítico e catalisador da consciência individual. Ora, definir a filosofia como prática obriga-nos a repensar a forma como utilizamos conteúdos e referências. Estes deixam de ter o protagonismo quase exclusivo das aulas, passando a ser auxiliares que permitem tomar consciência dos problemas e de algumas abordagens aos mesmos. Se seguirmos este caminho devemos ter o cuidado de evitar o erro que a generalidade dos manuais (todos?) comete:  fornecer textos excessivamente curtos de muitos autores, sem que se defina com clareza a tese de cada um e construindo uma espécie de síntese, mais ou menos incoerente, de diferentes perspectivas. Sou da opinião de que devemos dar textos completos e exemplificativos de um problema (ou de uma resposta), como base a partir da qual iremos organizar os conhecimentos, desenvolver questões, interpelar os autores e construir a nossa própria opinião fundamentada.
Os nossos fins serão sempre 1) a discussão de ideias, como prática filosófica de base, 2) adquirir noções de base para podermos discutir os problemas discutidos e, se possível, 3) permitir que os alunos contactem com ideias ou teorias que os ajudem a enriquecer a sua perspectiva sobre si e sobre o mundo.
Um problema importante originado pela viragem em direcção à filosofia como prática é o da avaliação. Temos de voltar a ponderar a importância do conhecimento de conteúdos; temos de valorizar uma série de competências tais como a capacidade de análise, a capacidade de argumentar, a capacidade de desenvolver ideias originais, o rigor na formulação das ideias e argumentos alheios e o respeito pelas opiniões contrárias.
No meu trabalho sigo o seguinte raciocínio: a filosofia faz-se pensando e discutindo problemas filosóficos, analisando teses e argumentos. Convém, pois, saber o que são problemas filosóficos e o que não são problemas filosóficos. Destaco duas ideias: a de que a filosofia é uma actividade e exige o exercício da argumentação. Esta tem como objectivo o progresso pessoal e do grupo e deve ser consequente. Devemos compreender que o cumprimento desses requisitos nos obriga a respeitar algumas regras básicas, que procuraremos pôr em prática. Assim vamos procurar desenvolver uma noção ao mesmo tempo intuitiva e explícita do que é a filosofia. Intuitiva por lidar com problemas que se possam imediatamente reconhecer como problemas. Explícita por apresentar frontalmente as características da filosofia;  apresentar a filosofia como uma discussão de problemas de contornos claros, que se caracteriza por ser uma discussão eminentemente conceptual e teórica (embora os dados empíricos sejam sempre bem-vindos, quando necessário), e que por ser uma discussão é realizada por uma comunidade de pessoas; desenvolver uma noção ao mesmo tempo intuitiva e conceptual de que a filosofia se interessa por problemas que nos são próximos e que são relevantes; e ter consciência de que não basta essa proximidade para nos tornar a todos filósofos; desenvolver princípios e técnicas necessárias à argumentação filosófica e científica.
As ciências estudam determinados tipos de problemas; por exemplo, porque é que se formou o buraco no ozono e quais as consequências que daí nos podem advir? Cada ciência estuda um determinado tipo de problemas. A biologia estuda problemas relativos aos seres vivos e aos ecossistemas, por exemplo, e a psicologia estuda problemas relativos aos comportamentos. Como resultado das suas investigações, acumulam conhecimentos e formulam teorias acerca desses problemas. Estes podem ser conceptuais ou abstractos, como os da matemática, ou empíricos, como os da biologia ou da história. As teorias, formuladas como tentativas de responder aos problemas formulados, são apoiadas por argumentos, quer dizer, por factos, raciocínios ou outros elementos que mostrem que as conclusões a que a teoria chega estão bem justificadas e provadas
A filosofia tem semelhanças com as ciências, por ser um trabalho rigoroso, realizado por um conjunto de investigadores e que procura ajudar-nos a ter uma melhor compreensão do mundo. Porém, tem algumas diferenças importantes em relação às ciências: em vez de trabalhar com problemas empíricos, trabalha com problemas conceptuais e abstractos (como a matemática); em vez de usar demonstrações matemáticas para estabelecer resultados, usa a argumentação e a discussão de ideias. Por não serem empíricos, os problemas da filosofia são difíceis de resolver. Por não haver métodos formais de demonstração, não há muito consenso entre os filósofos.
Uma vez que os problemas da filosofia não admitem respostas simples e óbvias, necessitam de um intenso e permanente debate de ideias. E como não são problemas que se resolvem através de provas empíricas ou demonstrações matemáticas a única maneira de os investigarmos é através do pensamento. É por isso que dizemos que a filosofia se faz pensando. Para filosofar é preciso pensar, e aqueles que pensam (e pensar é pensar pela sua própria cabeça) são bons candidatos a filósofos.
Por vezes os debates da filosofia são acerca de problemas aparentemente simples e banais, mas dos quais depende grande parte da nossa vida e do nosso pensamento: problemas relativos à justiça, à certeza daquilo que dizemos e pensamos, aos princípios que orientam a nossa vida e a nossa relação com os outros, à morte e ao sentido da vida, entre outros... Está a chegar a hora de iniciarmos este caminho.

Bom ano lectivo para todos!
F.Lopes