A palavra falada e a palavra escrita - Fernando Pessoa

A palavra falada é imediata, local e geral. Quando falamos, falamos para ser ouvidos imediatamente, com quem está ali ao pé de nós, e de modo a que sejamos facilmente entendidos d'ele, que sabemos quem é, ou calculamos que sabemos e que pode ser toda a gente, devendo nós pois falar como se ele fosse qualquer. A palavra escrita é mediata, longínqua e particular. Quando escrevemos, e tanto mais quanto melhor e mais cuidadosamente escrevemos, dirigimo-nos a quem não nos vai ouvir, (...); a quem não está ao pé de nós; a quem poderá entender-nos e não a quem tem que entender-nos, tendo nós pois primeiro que o entender a ele. (...)
Em resumo, a palavra falada é um fenómeno social, a escrita um fenómeno cultural; a palavra falada um fenómeno democrático, a escrita um aristocrático. São diferentes em substância: são pois forçosamente diferentes os seus respectivos meios e fins.
(...) A cultura é um fenómeno pelo qual estamos ligados ao passado pela inteligência; é, em outras palavras, a tradição intelectual.
Na palavra falada temos que ser, em absoluto, do nosso tempo e lugar; não podemos falar como Vieira, pois nos arriscamos ou ao ridículo ou à incompreensão. Não podemos pensar como Descartes, pois nos arriscamos ao tédio alheio.
A palavra escrita, ao contrário, não é para quem a ouve, busca quem a ouça; escolhe quem a entenda, e não se subordina a quem a escolhe.
Na palavra escrita tem tudo que estar explicado, pois o leitor nos não pode interromper com o pedido de que nos expliquemos melhor [.]

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa.
(Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.