Valores Ético-Políticos - "Política sem valores" - (Inês Pedrosa)

"Para que a política se torne uma vocação mobilizadora, terá que assumir uma cartilha ética mínima. Provavelmente nunca a teve: "O Príncipe" de Maquiavel é ainda estudado como uma espécie de bíblia do poder; foi-o em monarquias totalitárias. Mas não se adequa à democracia, menos ainda aos tempos complexos que vivemos, em que a economia internacional domina a política - porque os políticos se encostaram às boxes e se deixaram engolir pelo fascínio do capitalismo. A erosão dos modelos de sociedade pré-fabricados que foram incapazes de entender os sonhos e as necessidades dos indivíduos levou a um discurso apocalíptico e precipitado sobre o fim dos 'valores'. Esse discurso nasce da insegurança e do medo face à mudança civilizacional em curso no Ocidente a partir da segunda metade do século XX - que, pelo contrário, consiste numa preocupação inédita com as condições de vida das pessoas, sem distinção de sexo, idade ou etnia. A Carta dos Direitos Humanos tem pouco mais de meio século, e significa que, pela primeira vez na História, a sensibilidade face ao sofrimento alheio ganhou direito de cidadania. Vivemos a época em que os valores - a igualdade, a fraternidade, a liberdade - se tornaram centrais. O debate e a legislação sobre os direitos da infância, dos emigrantes, das mulheres, o casamento homossexual, a adopção ou a eutanásia relevam dessa preocupação, novíssima, com os valores. A disponibilidade de muitos ricos e famosos para dar parte das suas fortunas aos que mais precisam é uma novidade histórica. É verdade que esta consciência do outro como alguém semelhante ao "eu autobiográfico" (de que fala António Damásio no brilhante "O Livro da Consciência") avançou em paralelo com um capitalismo em roda livre, abstracto e devorador, que conduziu a uma crise mundial de proporções gigantescas. Porquê? Como explica claramente Manuel Maria Carrilho, no recém-publicado livro "E agora? Por uma nova república": "O que a crise revela sem quaisquer dúvidas ou equívocos são os pés de barro do mito da auto-regulação da indústria financeira". Um mito que os mais eruditos economistas não souberam desfazer, e que é filho da implosão do Muro de Berlim e da confusão entre capitalismo e democracia. Este livro abre com uma análise desapaixonada e exacta do percurso de Portugal desde Abril de 1974 até hoje - uma reflexão que a crise torna urgentíssima. Perceber como o país delapidou os dez milhões de euros diários que recebeu da Europa nos últimos 25 anos, investindo tudo no betão e nada na qualificação efectiva de pessoas e instituições - continuamos com uma taxa de analfabetismo de 10%, e 81% dos patrões portugueses tem apenas a instrução básica - é importante. Mas é mais importante que deixemos de chamar 'qualificação' à certificação da incompetência, e que não substituamos o deus do dinheiro pelo deus da tecnologia: Carrilho propõe, por exemplo, a criação de um Conselho de Ministros para a qualificação e de uma Universidade de referência, o reforço do papel de Portugal no mundo lusófono através de uma política cultural intensa - sem a qual nenhuma política da Língua funciona. Propõe também uma reestruturação da missão e do modo de funcionamento dos serviços públicos. Mas, antes de tudo isso, sublinha a necessidade de credibilizar a política e os políticos - que se deixaram esmagar e ultrapassar pelos negócios, e, acrescento eu, pelas negociatas. Luc Férry, arguto filósofo que foi durante dois anos ministro da Educação em França, dizia, em entrevista recente, que a política é um rodeo no qual o objectivo é manter-se em cima do cavalo o máximo de tempo possível. Esta percepção da política pode ser pontualmente injusta, mas é real.
As traições na praça pública, a quebra de palavra, o desrespeito com que as pessoas se tratam umas às outras (despedir o embaixador português na Unesco através da comunicação social, como aconteceu agora a Manuel Maria Carrilho, por exemplo) são o pão nosso de cada dia na política e explicam o cansaço dos mais velhos e o desprezo dos mais novos face a esta que devia ser a mais nobre das actividades humanas.
Quando se trata dos salários acintosos dos gestores públicos, diz-se que não é possível baixá-los sob pena de perder 'os melhores' - embora não esteja provado, antes pelo contrário, que esses cargos estejam de facto entregues, em regra e de um modo límpido, aos 'melhores'. Mas ninguém se preocupa que a constante ausência de valores no trato político afaste 'os melhores' da política - o que já é grave para as governações e arrisca tornar-se, a breve trecho, fatal."

Inês Pedrosa (Texto publicado na edição da Única de 2 de outubro de 2010)