Um olhar sobre nós: Papalagui - (Um livro a não perder)

"(...) Podereis reconhecer também o Papalagui (1) pelo seu desejo de nos fazer crer que somos pobres e miseráveis e que necessitamos de muita ajuda e piedade, em virtude de não possuirmos «coisas».
Queridos irmãos destas muitas ilhas: permiti que vos diga o que é uma «coisa». Há duas espécies de coisas. Há coisas que o Grande Espírito cria sem nós vermos e que nos não exigem, a nós, humanos, qualquer esforço ou trabalho, coisas tais como a noz de coco, a concha e a cabana, e há coisas que os homens criam, que exigem muito esforço e trabalho, tais como o anel, o prato ou o enxota-moscas. Para quê ser parvo, para quê criar ainda mais coisas para além das coisas sublimes que o Grande Espírito nos dá? Nunca, mas nunca, poderemos nós igualá-lo, porquanto o nosso espírito é demasiado pequeno e demasiado fraco para se medir com o poder do Grande Espírito, e a nossa mão demasiado fraca para se medir com a sua mão magnífica e possante. Tudo quanto fizermos será medíocre, nem sequer vale a pena falar nisso.
(...) Mas o Papalagui julga-se na verdade capaz de obrar tais coisas, julga-se tão forte como o Grande Espírito. Eis porque, do nascer ao pôr-do-sol, milhares e milhares de mãos mais não fazem do que fabricar coisas, coisas humanas cujo sentido ignoramos e cuja beleza desconhecemos. O Papalagui procura inventar sempre novas coisas.
As suas mãos tornam-se febris, o seu rosto, cor-de-cinza, e curvadas as suas costas; mas os olhos brilham-lhe de felicidade sempre que consegue uma nova coisa. Logo todos a querem ter, todos a adoram e a celebram com cantos na sua língua.
(...) É sinal de pobreza o homem precisar de tanta coisa e mostra, com isso, que é pobre em coisas do Grande Espírito. O Papalagui é pobre porque está obcecado pelas coisas. Já não pode passar sem elas. Quando ele, das costas da tartaruga, faz um instrumento para alisar os cabelos (depois de lhes aplicar um óleo), logo de seguida faz ainda uma pele para esse instrumento, um pequeno baú para pôr a pele e mais um baú grande para pôr o baú pequeno.
Numa cabana europeia há sempre tantas coisas que, mesmo que todos os homens de uma aldeia de Samoa carregassem mãos e braços com elas, nem assim conseguiriam levar tudo. Há, numa única cabana, tão grande número de coisas, que a maior parte dos chefes de tribo Brancos necessita de imensos homens e mulheres que outra coisa não fazem do que pôr essas tais coisas no seu lugar e limpar a poeira que as cobre. Há na Europa homens que encostam a arma de fogo à sua própria fronte, pois preferem deixar de viver do que viver sem coisas. Porque o Papalagui embriaga o seu próprio espírito de toda a maneira e feitio e, assim, convence-se a si próprio que não pode viver sem coisas, do mesmo modo que um homem não pode viver sem comer.
(...) Quem tem poucas coisas considera-se pobre e isso fá-lo sentir-se triste. Não há Papalagui algum que seja capaz de cantar e mostrar um olhar feliz se apenas possuir, como nós, uma esteira para dormir e uma tanoa para comer. Quanto mais realmente europeu for um homem, mais necessidade terá de coisas. Eis a razão por que as mãos do Papalagui nunca param de fazer coisas. A razão por que o rosto dos Brancos se apresenta geralmente cansado e triste, por que só muito poucos gastam tempo com as coisas do Grande Espírito, e a jogar no largo da aldeia, e a compor e cantar canções joviais, ou a dançar ao domingo, em plena luz do dia, ou a fruir dos seus membros de todas as formas possíveis, como a nós nos é dado fazer. É que eles têm sempre coisas a fazer. E coisas a guardar. E eis que, hoje, os homens brancos querem trazer-nos os seus tesouros, as suas coisas, para também nós nos tornarmos “ricos”! Contudo, essas coisas não passam de setas que envenenam mortalmente o peito daquele que é atingido.
Ouvi um Branco que conhece bem a nossa terra dizer: «Temos que levá-los a ter necessidades!» Necessidades, quer dizer coisas! E acrescentou depois esse homem inteligente: «Só então é que eles ganharão de facto gosto pelo trabalho!»".
(1) Papalagui significa homem branco, estrangeiro.
O Papalagui (Tuiavii de Tiavéa, public. 1920)

Erich Scheurmann Ed. Antígona