BIOÉTICA - A água, a ética e a vida

"A crise ambiental com a qual nos temos vindo a deparar e que apresenta um crescimento exponencial não será resolvida, nem o seu espectro de acção diminuído, se não começarmos a equacionar a realidade de um modo diferente (Varner, 2004). No fundo, a desconsideração para com a natureza reflecte-se numa atitude negativa sobre o ser humano, como escreve Menéres (2002) no seu artigo Ética e Ambiente: “se nos considerarmos donos da natureza haverá uma catástrofe ecológica”.
Foi através da percepção do degradar da natureza, com origem na acção humana, que o ser humano reflectiu sobre o seu modo de conviver com a natureza, ou seja, sobre a dimensão moral desta convivência (Neves, 1997). O ser humano é o único ser que se reconhece como um ser moral, capaz de agir moralmente em função da liberdade e da responsabilidade que descobre em si mesmo.
Este é justamente o reconhecimento do ser humano como um ser ético, dotado de possibilidade de agir vinculada à exigência de reflectir e de decidir conscientemente sobre esse mesmo agir. Neste sentido, é fundamental reconhecer e, principalmente interiorizar e consciencializarmo-nos de que a natureza não humana é mais do que um simples recurso ou meio para fins humanos. É fundamental reconhecer que o exercício do dever de preservar a natureza se inscreve na própria estrutura moral humana, do qual é testemunho o próprio surgimento da Bioética.
(...) O ser humano tem conhecimento das causas da crise ambiental e definitivamente tem de ser capaz de passar da teoria à prática e assim encontrar um caminho para a ultrapassar (Marques, 1998). Trata-se de um desafio ao nível da alteração dos padrões de comportamento, que passa pela institucionalização de uma lógica de prudência: “a afirmação das responsabilidades humanas em relação ao ambiente é gerada pela consciência dos danos que o próprio Homem lhe pode causar” (Leone, 2001). Apenas adaptando as nossas posturas antropocêntricas e egocêntricas de estar no mundo é possível superar a crise ambiental da nossa época, mesmo tendo noção de que um determinado grau de antropocentrismo continuará a existir sempre, uma vez que qualquer valor atribuído à natureza por parte do ser humano o é sempre com algum interesse (Neves, 1997).
Torna-se claro que existe uma necessidade crescente de favorecer o crescimento económico e social da comunidade, mantendo intacto o ecossistema. Não se trata de travar o nosso desenvolvimento, mas sim de estabelecer regras de conduta que tenham como princípio provocar os menores danos possíveis à natureza e reparar os danos ecológicos, ou seja, é necessário procurar controlar o presente e reparar o passado em benefício do futuro.
Surge assim a necessidade de uma nova forma de conduta em relação à natureza, uma nova concepção filosófica Homem–Natureza (Nogueira, 2000). Nasce a Ética Ambiental que se pretende que venha a constituir um desafio e uma verdadeira exigência para uma nova concepção de humanismo, onde a liberdade e a responsabilidade deverão ser encaradas como gerando uma praxis múltipla e complexa – ética, política e economia sustentável (Fernandes, 2002).
(...) A actual crise deve ser, então, entendida como uma oportunidade, onde o ser humano se depara com a necessidade urgente de encontrar uma resposta para os desafios do presente: “o problema da relação entre a ética e a crise ambiental pode e deve ser entendido como o impacto da ética sobre a crise ambiental e como o desafio que a crise ambiental levanta para a reflexão ética” (Renaud, 1996).
No entanto, enquanto o ser humano continuar a pensar e a agir em seu próprio proveito, a natureza continuará a ser vista como algo a conquistar e os animais como entes a serem utilizados para benefício do ser humano, o que se tornará inconcebível no nosso tempo: “a presença de um Homem num mundo surdo às necessidades da natureza é hoje insustentável; porque o diluir-se da especificidade do homem no mundo natural é hoje impensável” (Neves, 1997).
A ética ambiental integra-se no desenvolvimento novo de uma filosofia da existência humana, assente em novos valores sociais. A sua base é o estudo da relação Ser Humano – Natureza, tendo em conta que a natureza inclui todas as raças humanas e todos os seres existentes, abrangendo também a água, o solo e o ar. Tudo aquilo que existe tem o seu grau de importância e passa a englobar a nova relação ética (Sousa, 2002). (...) Esta nova forma de comportamento ético permitirá que todos os seres possam usufruir, em conjunto, deste bem que é a vida. E a vida no planeta Terra, tal como nós a conhecemos, é indissociável da água. A vida começou nos oceanos através de formas muito simples de organismos celulares marinhos e, durante milhares de anos, apenas existiram seres microscópicos, um conjunto de células, muito primitivas, que habitavam na água.
A água constitui um recurso insubstituível na quase totalidade das acções humanas, quer como solvente, quer como meio de transporte para elementos necessários ao metabolismo, do ser humano assim como das plantas. Possui propriedades que nenhuma outra substância possui, é simultaneamente uma componente essencial às actividades humanas e ao ambiente, pois, para além de viabilizar a sobrevivência humana, proporciona dignidade à vida dos indivíduos através das necessidades básicas como a higiene e o saneamento básico (Toharia, 2004). Tal como sublinha Bouguerra (2005) na sua obra As Batalhas da Água, “todos somos parte integrante do ciclo global da água que nos une, através do sangue, do líquido raquidiano e do líquido amniótico das origens à terra e a toda a Biosfera”. A água, como fonte de vida, é também um factor vital de desenvolvimento nas suas componentes sócio-económicas, nomeadamente o abastecimento das populações e da indústria, a rega, o suporte aos ecossistemas, a produção de energia, o turismo, o transporte, a pesca, o lazer, etc. Como podemos então colocar em risco a qualidade, a quantidade e a distribuição dos recursos hídricos? Não estaremos, com este tipo de comportamento, a colocar em risco também a nossa própria sobrevivência?
Entre os espectros ambientais com que a humanidade se depara no século XXI – aquecimento global, destruição das florestas tropicais, excesso de pesca nos oceanos – a grande escassez de água doce, sem sombra de dúvidas, ocupa o primeiro lugar da lista, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento. Os receios de um futuro de seca são levantados pelo crescimento previsto da população mundial – cerca de nove mil milhões para 2025, mas, uma vez que o volume de água doce disponível no planeta não aumenta, é fundamental retirar o máximo possível de cada gota de água porque, à medida que a população mundial vai aumentando, cresce a procura de alimento, a irrigação não controlada constitui uma ameaça grave para os rios, as zonas húmidas e para os lagos (Garcia, 2004).
Temos que ter presente que o binómio água – vida é indissociável, pois ambos os intervenientes possuem o seu valor fundamental e universal. Água é vida e símbolo de vida; água é fonte de desenvolvimento; o acesso à água é fruto e expressão da justiça e da equidade social. A água é um bem essencial para a redução da pobreza e para o desenvolvimento sustentável, pois sem ela não é possível crescer. Porém, a explosão demográfica, a escassez e a falta de saneamento básico, a consideração da água como um bem público e do seu acesso como um direito humano fundamental, ainda que de forma implícita, o seu impacto nas políticas sociais e económicas, são as principais razões para a crescente crise mundial da sustentabilidade dos recursos hídricos. Daí decorre a necessidade para alcançar esta sustentabilidade, de uma gestão sustentável dos recursos de água, começando-se por encarar as questões ambientais com a mesma importância que a atenção reservada às questões económicas, sociais, geográficas, políticas e mesmo espirituais (Rahaman e Varis, 2003).
A questão da água interpela a humanidade no plano ético, no plano político, no plano da justiça e da solidariedade. Nenhuma outra questão merece mais atenção por parte da humanidade, pois ela determina a paz universal e o futuro de todos os seres vivos; deste modo só um olhar global e ético sobre os recursos hídricos permitirá compreender a sua importância excepcional para a permanência da vida humana na Terra.
Esta consciência, hoje praticamente universal, deu início a um processo de mudança que a actual geração tem o dever de seguir, para benefício próprio e das futuras gerações. É por isso urgente desenvolver uma ética comum contra a crescente escassez e vulnerabilidade da água, ética fundamental para a capacidade que os homens têm para sobrepor ao egoísmo do privilégio a consciência da responsabilidade colectiva das gerações futuras (Selborne, 2001).
Esta ética proporcionará a formação de uma humanidade consciente perante a vida na Terra e dará origem a um novo comportamento com preocupações na preservação global da natureza, tornando-se assim numa nova esperança para a vida humana no planeta."
In: A Água e a Ética - Instituto de Bioética da U.C.P. - Joana Araújo, Ana Sofia Carvalho , Michel Renaud