
Obviamente, os defensores da posição pró-vida podem ter opiniões muito diferentes a respeito das excepções à impermissividade do aborto. Na verdade, podem divergir até quanto aos actos classificáveis como actos de abortar. Suponha-se, para dar o exemplo mais conhecido, que para salvar a vida de uma mulher grávida é preciso fazer-lhe uma histerectomia, removendo o seu útero canceroso – e provocando inevitavelmente a morte do feto. Mesmo um absolutista poderia aprovar a realização da operação. Ele defenderia que num caso deste género, por oposição aos casos genuínos de aborto, não existe a intenção estrita de matar o feto: aquilo que se pretende é apenas remover o útero de modo a salvar a vida da mulher, sendo a morte do feto um mero efeito colateral da operação.
Apesar das divergências assinaladas, não deixa de existir uma demarcação clara entre os defensores das posições pró-vida e pró-escolha. Os primeiros pensam que, logo no primeiro trimestre da gravidez, o aborto é profundamente errado, pelo menos na grande maioria dos casos. Os segundos advogam a permissividade geral do aborto, e, mesmo que considerem errado matar deliberadamente o feto numa fase avançada da gravidez, isso levá-los-á a reprovar apenas uma pequena parte dos abortos efectivamente realizados. (Por exemplo, nos Estados Unidos, em 2002, 88% dos abortos ocorreram nas primeiras 12 semanas de gravidez — e os que ocorreram após a vigésima semana perfazem apenas 1,24% do total.)
Pode parecer que, à partida, o defensor da posição pró-escolha está em vantagem. Imagine, por exemplo, que alguém afirma que comer laranjas é eticamente errado. Não nos compete mostrar que isto é falso, não temos de apresentar quaisquer razões que estabeleçam a permissividade da prática de comer laranjas. É o adversário da ingestão de laranjas que tem de justificar a sua (peculiar) posição. Afinal, a mera ausência de razões para acreditar na imoralidade de uma certa prática ou categoria de actos autoriza a convicção na sua permissividade. Dado este pressuposto plausível, o defensor da permissividade do aborto parece estar numa posição muito mais confortável: é o crítico do aborto que tem de avançar argumentos a favor da sua perspectiva, o ónus da prova está do seu lado; a ele compete-lhe apenas mostrar que esses argumentos fracassam, o que, em princípio, não será tão difícil como desenvolver uma justificação positiva. É verdade que o crítico do aborto enfrenta o desafio de oferecer uma justificação satisfatória para a sua perspectiva. Contudo, o defensor do aborto não se pode limitar a (tentar) derrubar os argumentos pró-vida disponíveis. Se ele acredita que o infanticídio é errado, tem de explicar por que razão é permissível matar um feto, mas não um bebé ou um recém-nascido. E, mesmo que acredite também na permissividade do infanticídio, tem de explicar por que razão é errado matar um ser humano adulto como nós, mas não um bebé ou um feto. O defensor da posição pró-escolha tem de nos dizer, então, a partir de que momento geralmente se torna errado matar um indivíduo humano, e a sua resposta não se pode resumir a um critério ad hoc, destituído de valor explicativo. Quando percebemos que o defensor do aborto não pode evitar este desafio, vemos que, na verdade, não está numa posição inicial mais confortável do que a do seu adversário.
In http://criticanarede.com - Pedro Galvão