"Ciência e religião. Afinal o diálogo é possível" - Jornal I

Dogmáticas e imperfeitas. A ciência e a fé têm muito em comum, por exemplo, nenhuma consegue explicar o sentido último das coisas

Ciência e religião, afinal, podem coabitar. E se a ciência não consegue demonstrar que Deus não existe, a fé também não consegue provar o contrário. Amanhã, um teólogo e um químico vão tentar mostrar que é possível o diálogo entre a ciência e o cristianismo, no primeiro simpósio sobre fé e cultura no Instituto de Ciências Religiosas de Aveiro (ISCRA).
A fé, explica o teólogo jesuíta Alfredo Dinis, apresenta desafios à ciência. "Como a ciência impõe desafios à fé", acrescenta. A fé dissuade os homens de ciência de quererem ter "a resposta última para o sentido do universo e da vida". Mas o domínio da fé também precisa de reconhecer que, de entre as suas respostas, "muitas ficam por dar".
Os próprios avanços da ciência, considera o teólogo, são positivos para a fé, apesar de nem sempre o cristianismo e os cientistas dialogarem de foram serena. "O progresso obriga os crentes a repensarem a fé. A imagem de Adão e Eva foi repensada a partir da biologia. Antes de Galileu pensava-se que Deus morava atrás das estrelas. A ciência ajuda a que a fé seja uma perspectiva informada da realidade, e isso só pode ser enriquecedor". A maior prova de que o diálogo é possível, acrescenta o jesuíta, é a existência, ao longo dos tempos, de monges cientistas e de homens da ciência que têm fé. Como o químico e professor da Universidade de Coimbra Sebastião Formosinho. Apesar de se dedicar a "interrogar a natureza", garante que "não há qualquer incompatibilidade" com a esfera da fé. Até porque, justifica, "a ciência, através dos seus paradigmas, também se baseia em verdades inquestionáveis e tem um carácter dogmático".
Deus dentro da cabeça? Só que há novas questões que se levantam na relação entre a fé e a ciência, sobretudo no campo das neurociências. Novos métodos, como a ressonância magnética funcional, permitem observar o que acontece no cérebro. Alguns cientistas têm- se dedicado inclusivamente à procura do "ponto de Deus no cérebro", depois de verificarem que há um aumento da actividade cerebral em determinadas zonas durante os momentos de oração, (ver imagem). "O grande problema é que se reduz a acção da pessoa ao que se passa dentro da cabeça, ignorando que a pessoa não o é só por ser, mas por estar em relação com o ambiente e com os outros. O cérebro é uma condição necessária às emoções, mas não é suficiente. O amor e as decisões ético-morais transcendem o domínio da ciência, têm uma componente que vai além da biologia", defende o teólogo jesuíta.
A fé, por jogar no domínio da crença, não consegue provar que Deus existe. "Mas a ciência também ainda não conseguiu mostrar o contrário, no sentido científico de prova", admite Sebastião Formosinho. Para os cristãos, a prova chega pelo testemunho dos primeiros cristãos. Para a ciência, os acontecimentos espirituais não passam, quanto muito, de reacções físicas e químicas que se jogam no cérebro. "Seja na ciência seja na religião, há uma base de confiança, de crença que não pode ser discutida", acredita o químico. A religião procura o porquê, o sentido da existência, e move-se na esfera do saber viver, ao passo que a ciência se move na explicação de como funciona o mundo. "E a religião não tem de se meter na origem e no fim do universo, tal como a ciência não pode querer inteirar-se do saber viver", acrescenta Alfredo Dinis.
Mesmo assim, as tentativas de responder às questões que nem religião nem ciência conseguem explicar devem manter-se. "Nenhuma religião tem toda a verdade e, eventualmente, todas as religiões juntas contêm mais verdade que uma religião só. Daí a importância do diálogo inter-religioso", sublinha o professor de Química, para quem "a teoria evolucionista está certa, a Bíblia contém figuras mitológicas em que se incluem Adão e Eva (que representam a humanidade e não a pessoa singular) e o Génesis é o modo como os povos daquela época viram o sentido possível da sua vida, da crença, do mistério, da natureza".
No entanto, nem sempre a Igreja tem aceitado pacificamente os progressos da ciência. "Por ter medo que os aspectos que chegam através do avanço científico possam prejudicar as verdades da fé e levar os crentes a abandonar a religião, porque o progresso parece satisfazer plenamente o homem", acrescenta Sebastião Formosinho. Mas a ciência, diz Alfredo Dinis, só pode fazer bem à fé: "Permite que se consolide e seja fundamentada, e não em histórias para crianças ou quase irreais. A actualização da fé com base na ciência impede que a crença se perca."
in - Jornal I - Rosa Ramos, 18 de Março de 2011