Três sugestões para democratizar a democracia - por Luís Pereira da Silva

De cada vez que o povo é chamado às urnas, é tal a distância do povo em relação ao acto que mais parece que alguém confundiu os termos e pensa tratar-se de algum enterro. E, se é inquietante este afastamento, não o é menos que os decisores políticos não retirem deste tremendo sinal as suas implicações.
Na verdade, considero que a abstenção resulta de um profundo sentimento de que já não vale a pena e, por isso, denuncia a existência de um vulcão adormecido que, tal como os verdadeiros, se não tiver pequenos géiseres e fumarolas que permitam libertar a energia acumulada, rebentará, mais cedo do que tarde, com uma violência descontrolada. Que o digam as recentes convulsões no Norte de África!
Neste sentido, vale a pena começar por recordar que o que mais conduz à percepção de que não vale a pena é a mentira e a falta de inteligência na interpretação dos sinais que se dão.
Para a convicção de que a mentira está instalada na democracia portuguesa contribui, no meu entendimento, a discrepância entre o que se preconiza como princípios da democracia e o que, de facto, se concretiza.
Na realidade, são apontados como principais marcas da democracia três pilares estruturantes, a saber:
- que o povo é que decide – por isso se lhe chama democracia (demos [povo]+cratia [poder]);
- que a cada eleitor corresponde um voto;
- que os poderes (legislativo, executivo e judicial) são separados (marca que se deve ao iluminado pensador francês do tempo da revolução gaulesa, Montesquieu).
Enunciados deste modo, tais pilares parecem ser a garantia de um regime perfeito, contudo, há deficiências congénitas no nosso sistema que impedem que vejam a luz do dia, o que é notado pelo povo, mesmo que ele não entenda bem o mecanismo que está na base do seu sentimento de que o estão a enganar.
Nulos e brancos representados
Assim, basta recordar que, para que o povo seja, de facto, quem decide, deve ser-lhe dada a oportunidade de que, da sua decisão, resultem consequências efectivas no órgão de soberania que o representa.
Tal parece, no entanto, não se verificar, na medida em que, se alguém entender que nenhum dos candidatos sufragáveis corresponde às suas expectativas, e decidir deixar o voto em branco ou nulo (para evitar que o voto branco seja preenchido criminosamente por alguém presente na mesa de voto), tal decisão não tem nenhuma repercussão na composição do parlamento. Ora, tal conduz a uma noção de que, se não há identificação com nenhum candidato, melhor é não comparecer.
Seria outra a postura se os votos brancos e nulos significassem percentagem correspondente de lugares vazios no parlamento. O povo compareceria e os políticos seriam mais exigentes consigo próprios.
Fim dos círculos distritais
O segundo princípio também não encontra reflexo no nosso sistema eleitoral. Na verdade, o voto de um eleitor de Aveiro, que elege 16 deputados, vale mais do que o de um eleitor de Vila Real, que pode eleger 5 deputados. O sistema é tão oblíquo que o único benefício que poderia advir deste sistema está sumido, na medida em que cada deputado, nas matérias decisivas, está sujeito a disciplina de voto, pelo que não pode representar o círculo eleitoral pelo qual, de forma diferenciada, fora eleito. Acresce a isto uma curiosidade também pouco constatada: um partido pode ter maioria absoluta sem ser eleito pela maioria dos votos válidos (coisa estranha esta, também!) e outro pode ter mais deputados sem ser mais votado…
Veja-se, por exemplo, como, nas últimas legislativas, uma diferença de apenas 0,62% entre o CDS e o Bloco de Esquerda significou uma diferença de cinco deputados, na Assembleia da República.
A única solução, para eliminar tamanha confusão pouco democrática, passaria, necessariamente, por acabar, de uma vez, com o sistema misto (de que nada resulta de democraticamente relevante), substituindo-o por um outro em que o cálculo dos deputados fosse feito a partir do total nacional, de acordo com as listas previamente definidas e ordenadas.
Quem legisla sobre os políticos?
Por fim, o terceiro pilar, tantas vezes definido como o garante do sistema democrático: a separação de poderes. Para além das evidentes promiscuidades entre os poderes e a tendência cada vez mais acentuada do executivo para legislar a torto e a direito, tantas vezes denunciadas e que, de tanto serem repetidas, já soam a curiosidade de almanaque, há uma mistura de competências cujos resultados são visíveis e recentemente tão repetidos até à saciedade.
Quem legisla sobre a Assembleia da República (AR) e sobre os deputados e políticos?
A própria AR e os próprios deputados e políticos! São todos boas pessoas, seguramente, mas, já agora, na condição de professor, gostaria de que me fosse dada a oportunidade de, por um dia, legislar sobre a minha própria profissão. Tenho umas sugestões para moralizar esses malandrecos dos professores!
Enquanto for a própria AR a legislar sobre si e os deputados continuarem a ser os legisladores dos seus próprios direitos e deveres, nunca estarão a ser consequentes com o princípio democrático de que dizem ser protectores. É uma questão de coerência. E o povo percebe a incoerência.
Valeria a pena procurar uma solução que moralizasse, segundo a tão propalada ética republicana, os presumidos detentores dos valores da mesma República. De outro modo, a lava do vulcão poderá não ser contida por muito mais tempo.
Luís Pereira da Silva - Professor EMRC AEAAV