Boaventura Sousa Santos - Em busca da cidadania global

Entrevista
(Português do Brasil)

Nesse momento da nossa história, como o senhor avalia a participação da sociedade civil na construção de um novo mundo?
Em primeiro lugar, vale a pena esclarecer o que chamamos de “sociedade civil”. Na tradição ocidental, esse conceito ajudou a definir os espaços democráticos da ação dos cidadãos, mas também os espaços de exclusão daqueles que não eram considerados cidadãos, como as mulheres, os trabalhadores, os negros, os indígenas... Portanto, de acordo com esse conceito original, muita gente ficou de fora da cidadania.
E qual é o conceito hoje?
Nos anos 80, emergiu a proposta “neoliberal” de desenvolvimento, que nos conduziu ao atual modelo de globalização. Temos que ter em mente que esse modelo apoiou muito a idéia de sociedade civil, devolvendo-lhe competências que estariam indevidamente nas mãos do Estado. Condenou-se o controle estatal de empresas públicas e do sistema de previdência social, saúde, educação... Dessa forma, se fortaleceu um conceito de sociedade civil que tem muito a ver com mercado e privatizações.
Mas também não é nessa sociedade civil que o senhor acredita?
Certamente não. Quando nós falamos de sociedade civil, estamos falando de outra coisa. Falamos da união de cidadãos trabalhando em ações voluntárias, para conversar, discutir, criar soluções... sem visar o lucro. É essa concepção de sociedade civil, baseada na solidariedade, voluntariado e reciprocidade, que nos interessa hoje.
Além do mais, numa sociedade onde o mercado se tornou dominante, a sociedade civil solidária passou a envolver os oprimidos e explorados. Portanto, estamos tentando construir uma sociedade civil global dos excluídos.
A Ku Klux Klan ou o Bill Gates podem ser considerados sociedade civil, mas não daquela que queremos fortalecer. Eles sempre tiveram o Estado à sua mercê pela força financeira. Nós não temos o poder do dinheiro, mas dos princípios, das idéias, causas e valores. E temos a nosso favor a maioria da população mundial que é vítima do sistema atual.
E como fortalecer essa nova sociedade civil?
Esperamos que, através de lutas, como o Fórum Social Mundial, essas pessoas recuperem a pretensão de ser cidadãs. A nossa luta é justamente que as vítimas da globalização dominante se transformem em protagonistas de sua própria libertação e resistência.
(...)
O senhor poderia explicar melhor a questão da diversidade?
Vivemos em um mundo onde queremos ser simultaneamente iguais e diferentes. Pensamos uma cidadania planetária que respeite as diferentes culturas como a muçulmana, hindu, indígena ou africana. Não queremos um falso universalismo que destrói todas as diferenças e que impôs a cultura branca, masculina e ocidental como um padrão universal.
Qual universalismo o senhor defende?
O universalismo que queremos hoje é aquele que tenha como ponto em comum a dignidade humana. A partir daí, surgem muitas diferenças que devem ser respeitadas. Temos direito de ser iguais quando a diferença não inferioriza e direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.
O princípio da igualdade nos obriga a políticas de redistribuição de riquezas. Mas, ao mesmo tempo, o princípio da diferença nos obriga a ter políticas de reconhecimento e aceitação do outro. É complicado, pois precisa ser um processo paralelo. Não podemos reconhecer a identidade dos indígenas e, ao mesmo tempo, tirar suas terras e riquezas naturais. Portanto, a sociedade civil transnacional ainda é um grande projeto em construção.
É possível constituirmos um grande movimento transnacional?
Podemos ter um movimento uno, abarcando os grandes embates entre Norte e Sul, ricos e pobres, mas que ao mesmo tempo mantenha a flexibilidade e horizontalidade na sua organização. Não pode haver dogmatismos, intolerâncias ou aproveitamentos políticos excludentes. Não podemos esquecer que quem participa dessas mobilizações ainda é uma minoria que representa a maioria da população mundial, que muitas vezes ainda é analfabeta, está com fome e não tem forças para se organizar.
(...)
A nova sociedade civil poderá fazer as mudanças sozinhas ou terá que se articular com o governo?
Não temos condições de desperdiçar nenhum tipo de articulação. A luta junto ao Estado é muito importante, mas feita com independência. Em alguns países, a sociedade civil pode trabalhar em parceria, em outros, tem que confrontá-lo.
Além do mais, acredito que seria um grande erro minimizar e negligenciar o Estado, achar que ele deixou de ser importante. Infelizmente, é exatamente essa armadilha que a globalização nos quer impor. Nós que estamos atentos sabemos que o Estado não está hoje mais fraco do que era antes. A única diferença é que não está usando mais a sua força para proteger os cidadãos, mas sim as empresas. Nunca, por exemplo, foram concedidos tantos incentivos fiscais à iniciativa privada.
Quais os principais desafios para conquistarmos uma cidadania plena para todos os povos?
Uma das grandes áreas em que vamos ter que lutar muito para impor uma alternativa é a democracia. Após o fim das diferenças ideológicas, a democracia tornou-se um mercado. E com ele entrou a corrupção. Ou seja, hoje compram-se e vendem-se votos de acordo com o dinheiro disponível. Isso aliás acontece nos Estados Unidos há muito tempo, mas é mais transparente pois está organizado no sistema dos lobbys. De qualquer forma, acho repugnante que um deputado mude o seu voto de acordo com o dinheiro oferecido para financiar a sua campanha ou montar uma fábrica na sua região. Essa é uma democracia fraca, altamente capitalista e temos que lutar por uma outra mais participativa. Em outras palavras, a democracia atual é de baixíssima intensidade. A rigor, se considerarmos os primeiros pensadores da democracia, não temos nenhuma sociedade verdadeiramente democrática. O próprio Rousseau disse: “Uma sociedade só é democrática quando ninguém é tão pobre que tenha que se vender e alguém é tão rico que possa comprar alguém”. Algo muito diferente do que acontece hoje em dia...
Na área econômica, qual é o desafio?
Temos que lutar para que o mercado livre também seja justo. Precisamos fortalecer os sistemas alternativos de produção, como as cooperativas, associações, trocas solidárias... São iniciativas que põem em cheque as contradições do atual modelo, questionando por exemplo os sistemas de crédito e financiamento.
Por outro lado, temos que ampliar a agenda dos direitos humanos, ressaltando os direitos econômicos e sociais. Eles têm ficado de fora da agenda e, na verdade, interessam a maioria dos latino-americanos, africanos e asiáticos. Pois para que me interessa a liberdade de comprar o jornal diário se ele custa a metade do meu salário da semana? Não faz sentido nenhum.
Algo mais deve ser feito na área dos direitos humanos?
Também precisamos ampliar a noção dos direitos humanos no sentido dos direitos coletivos, como das mulheres e indígenas. Acredito que a questão indígena é uma das lutas mais emancipatórias do continente americano, que nos vai convocar a pensar a autodeterminação de uma nova forma.
Há algum desafio em relação ao meio ambiente?
Uma das grandes pilhagens atuais é a biopirataria, que rouba a riqueza das florestas, que estão no hemisfério sul e muitas vezes em territórios indígenas. A biodiversidade é um patrimônio muito valioso, e sua utilização depende do conhecimento tradicional das populações indígenas, rurais e ribeirinhas. Temos que nos perguntar se esse conhecimento está sendo defendido, valorizado e remunerado. Não faz sentido que ele gere lucros fabulosos e aqueles que o detém continuem na miséria e no isolamento.
A concentração da informação é outra grande ameaça?
Sim. Se é verdade que daqui a cinco anos teremos quatro ou cinco grandes empresas mundiais de comunicação e que todas as outras serão dependentes dessas, temos que nos perguntar qual é o impacto disso para o silenciamento das causas justas e da democracia. Portanto, temos que dar voz urgentemente àqueles que vão perdê-la ou já não a têm.
Qual desses desafios é o mais difícil?
Todos são difíceis e necessários, não há um mais importante do que o outro. Estou consciente das dificuldades, mas acredito que já estamos articulando alternativas e propostas. Considero-me um otimista trágico.
Estamos conseguindo avançar na mobilização para a conquista dessas alternativas?
Já passamos o momento preliminar de mobilização, que se consolidou a partir de 1999 com o movimento de Seattle, seguido por Bangkok, Praga, Montreal, Washington, Davos, Gênova... Todas essas mobilizações aconteceram nos países do Norte, contra reuniões de organizações internacionais e muito dominadas pelas agendas dessas reuniões. Nesse sentido, o Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, representou um marco: foi o primeiro no Hemisfério Sul, num país “em desenvolvimento”, organizado não contra algo, mas a favor de uma alternativa.
O melhor sinal disso tudo foi que, com 4 mil delegados e mais de 10 mil participantes, Porto Alegre teve uma violência quase zero se comparada com Davos, na Suíça, ou Gênova, na Itália. Foi uma grande demonstração do que é um debate civil propositivo. Muitas propostas foram apresentadas e serão consolidadas nos próximos fóruns. Acredito que estejamos na fase inicial de um grande processo.

in www.dhnet.org.br/