A crise que se esconde na crise - Luís Silva



Estamos na época das cerejas e até as conversas se deixam embalar de outro modo.
Num destes dias, no desenovelar das conversas de fim de tarde, fui interpelado a ler um artigo de Martha Nussbaum, publicado no Courrier Internacional, com a quase ameaça de que era obrigatório, por nele se repercutir muito do conteúdo de conversas havidas sobre os desvios a que tem sido votado o mundo da educação.
E, se há encontros que mudam rumos, há textos, palavras e linhas de pensamento partilhadas que são como que encontros. Este artigo merece tal epíteto.
Martha Nussbaum, uma pensadora norteamericana, sustenta, resumidamente, que estamos a assistir a uma crise mundial. Não aquela que toda a imprensa e a falta de pecúlio ao fim do mês nos tornam patente. Antes, uma outra que esta pode reforçar e, mesmo, perpetuar: a da educação. A autora não tem medo das palavras: «falo da que, apesar de passar despercebida, se arrisca a ser muito mais prejudicial para o futuro da democracia: a crise planetária da educação.»
Em síntese, a tese ali defendida é a de que se assiste à morte lenta da aposta nas disciplinas de humanidades, em benefício de uma aposta exclusiva nas áreas técnicas e científicas, entendidas como áreas de utilidade evidente para as sociedades.
A ideia não será, de todo, nova, pois vem sendo reiteradamente recuperada pelos que se dedicam ao estudo do que seja o saber, o conhecimento humano, a ciência. (...) Conhecemos não só para transformar o mundo, mas simplesmente porque desejamos conhecer. A capacidade de conhecer e o desejo de fruir, saborear o conhecimento (não deixa de ser curioso que «saborear» e «saber» tenham a mesma origem etimológica!) é o que nos distingue dos demais seres, em geral, e dos animais, em particular.
A novidade de Nussbaum está, assim, não tanto na tese, mas no carácter quase panfletário do seu desafio. É como que um «j’accuse» («eu acuso») que interpela a não perdermos nem mais um minuto. Educar não pode esgotar-se em adquirir os conhecimentos que sejam marcados pela utilidade de virem a tornar-se uma determinada técnica. Não conhecemos apenas porque temos de transformar.
Ora, assim, o repto que a autora deixa é o de que se restitua um lugar eminente aos saberes humanísticos que tornam possível o desenvolvimento do espírito crítico, condição imprescindível para que a democracia sobreviva, recordando, implicitamente, o pensamento de Zagrebelsky, o ex-presidente do supremo tribunal de justiça italiano, que defende que existem democracias críticas e democracias não-críticas.
A força da crítica de Nussbaum está em denunciar que, sabendo que a educação molda as consciências, a matriz que se reproduz pela educação vai repercutir-se no tempo. E, se o paradigma da educação assenta na ideia de que vale o conhecimento que for útil, considerando-se desnecessário e prescindível o saber que não tiver uma utilidade imediata e evidente, então, a sociedade que estamos a construir é, também ela, sustentada na ideia de que é válido o que for útil… Até à machadada final que será julgar os homens e mulheres pela sua utilidade.
Com efeito, este salto não é tão gigante como possa parecer. Basta olhar em redor… Quem, ainda, tem tempo para o tempo inútil? Quem tem tempo para os que já não produzem? Quem reconhece dignidade aos que já não desempenham uma função? Quem ainda respeita de igual modo quem é rico e quem é pobre, quem é nobre e quem é plebeu?
Estamos reféns da razão instrumental, com que a modernidade se propôs superar a razão contemplativa medieval. Os modernos, que muito trouxeram de importante, válido e legítimo, introduziram, porém, uma estrutura de pensamento que confinou o conhecimento ao âmbito da ciência transformada em técnica. O conhecimento, a verdade são, para a modernidade, o que se pode medir, quantificar, utilizar. O que escapar a estes critérios é preterido como mentira e falsidade. Mas, curiosamente, só fica fora destes critérios o que é, humanamente, mais importante. Quanto pesa o amor? Quanto mede a amizade? Quanto custa a confiança? Qual o símbolo químico da solidão? Qual a equação do sentido da vida?
Obrigado, Nussbaum, e a quem nos apresentou.
Luís Silva – professor EMRC