Ecologia e Direitos

"A ligação íntima entre o direito, a justiça e o valor que prevalece na cultura ocidental reserva só para a esfera humana a usufruição de direitos que se inscrevem no contexto igualitário da reciprocidade entre direitos e deveres, implicada pela posse de uma condição ontológica comum. Assim, pertencer à esfera humana mesmo nos casos em que claramente esse condição é limitada por factores genéticos, fisiológicos, psicológicos ou sociais (doenças mentais, condição de extrema privação psicossocial, estado embrionário ou fetal do ser, etc.), é condição suficiente para participar das leis da reciprocidade moral e jurídica que regulam as trocas humanas, na medida em que se pressupõe, em todos estes casos, um potencial de humanidade que, por uma razão ou por outra, foi impedido de se realizar.
 Como integrar o animal nesta comunidade de direito(s)? A questão é tanto mais complexa quanto, na natureza, não existem direitos. O leão não interfere com os “direitos” da gazela quando a mata para comer. Os animais parasitas não podem ser levados a um tribunal natural pelo facto de sobreviverem à custa de outros animais. Caricaturando: a doença e a morte, enquanto elementos naturais, não são sujeitos de direito susceptíveis de serem recriminados pela sua acção devastadora contra os direitos à saúde e à vida dos seres.
 Assim, os direitos não correspondem a estados naturais, mas são antes uma atribuição humana de estatuto ”de direito”. Eles não correspondem a actos constativos ou descritivos de situações naturais – a falácia naturalista que subentende as narrativas holistas da ecologia profunda – mas sim a prescrições normativas sobre estatutos instituídos pela vontade humana de praticar um bem que seja justo (ou seja, partilhado por todos quantos participam da mesma condição moral).
 Por outras palavras, falar de direitos animais – como, no contexto humano, dos vários direitos humanos - é reconhecer a qualidade performativa do legislador, que se apoia sobre o reconhecimento de certos valores que convém salvaguardar no contexto de uma concepção geral do bem.
 Deste modo, a questão dos direitos animais inscreve-se num quadro alargado de reconhecimento de valores próprios aos animais que, para os utilitaristas, derivam do reconhecimento da capacidade animal de sofrer (ao não realizarem esses valores) e, portanto, da prescrição de um alargamento da comunidade moral a eles. O utilitarismo não resolve, no entanto, as questões dos direitos animais ou vegetais cujo sofrimento desconhecemos, porque ele não nos é visível nem cognoscível na base da proximidade antropormórfica com que definimos o sofrimento dos mamíferos, das aves, e também dos répteis, dos peixes. Será que um insecto sofre? Ou um organismo como uma anémona? Ou uma árvore? Ou qualquer outro ser vivo que não seja dotado de um sistema nervoso centralizado, com detectores específicos para a dor física e, nos cérebros mais complexos e especializados, com sinais (e complexos de sinais) específicos para a dor psicológica?
 A oposição entre os utilitaristas e os defensores da ecologia profunda reside neste corte arbitrário efectuado pelos primeiros relativamente ao reconhecimento que fazem dos sujeitos de direito na natureza. Enquanto que para P. Singer e seus seguidores, a capacidade de sofrer constitui o critério para a atribuição de um estatuto moral e, portanto, de direitos, que ficam reservados para a esfera “sensível” (o mundo animal dotado de sistema nervoso), os deep ecologists argumentam que esta opção deixa nas trevas do não direito a esfera vegetal e a esfera mineral que, na sua concepção panteísta, se reclamam de uma igual consideração moral.
 A questão pode ser abordada de outro ângulo, que releva da consideração dos valores no mundo vivo não somente enquanto este é dotado de características sensíveis, mas enquanto ele é dotado de uma entelecheia, de uma finalidade própria (de um ethos), que se inscreve no seio conflituoso, e cooperante também, de uma comunidade material (de um oikos) onde o ser humano também se inclui.
 Nesta perspectiva ( que é a que emerge da etologia comparada e da moderna neurobiologia de inspiração evolutiva) a sensibilidade animal pode ser interpretada como um regulador de um reportório comportamental mais vasto que está selectivamente finalizado para a reprodução e para a sobrevivência. Elimina-se, deste modo, o perigo de identificação antropomórfica aos “animais sensíveis”, introduzindo critérios comportamentais mais adequados à consideração da dinâmica dos interesses, e dos valores na natureza.
 Como vemos, a atribuição de direitos, como a sua aplicação, relevam de uma avaliação; ora esta avaliação está sujeita tanto às informações apoiadas nos conhecimentos empíricos sobre os seres, como à intuição ética que nasce das ideias genericamente aceites sobre o bem. Neste sentido, a atribuição e aplicação de direitos relevam de uma cultura."
Marina Prieto Afonso Lencastre
Revista Lusófona de Educação, 2006, 8, 29-52
Ética ambiental e educação nos novos contextos da ecologia humana