Globalização e Direitos Humanos


"Não é mais sustentável uma ‘praxis’ centrada numa lógica de superioridade e de domínio ilimitado e por vezes irresponsável do humano sobre a natureza. A preservação da humanidade não pode ser considerada à parte de uma relação equilibrada com a natureza. O equilíbrio entre os dois campos é fundamental. E não me parece justo pensar na preservação da natureza como uma condição para a salvação do próprio homem. Esta seria ainda uma perspectiva antropocêntrica, egoísta e interesseira por parte do humano. É preciso respeitar a natureza e a vida no planeta pelo seu próprio valor intrínseco. Sem esta relação de equilíbrio e respeito, perder-se-á a sustentabilidade de uma relação que foi, é e sempre será instável entre o homem e a natureza. A consciência deste facto é um factor indispensável para uma acção responsável do ser humano no mundo à sua volta.
Com efeito, os avanços incrivelmente rápidos e profundos no plano da tecno-ciência contemporânea têm vindo não só a alterar os parâmetros da relação do homem com a natureza, como ainda a deixar-nos sob uma névoa de invisibilidade, de imprevisibilidade e de ignorância relativamente ao futuro. Penso muito sinceramente que nem tudo o que o homem pode fazer, deve fazer. É esta dimensão de sabedoria prática que é preciso criar, sob risco de uma existência cada vez mais frágil e, no limite, capaz de se auto-destruir.
A este título, evoco aqui o conceito de ‘ética prudencial’, de Hans Jonas, isto é, de uma ética da responsabilidade para com o futuro 16. Se não domino as consequências futuras da minha acção no presente, é de elementar responsabilidade para com o futuro das gerações vindouras e da preservação da vida no planeta que a minha acção no presente seja prudente. Por exemplo, quanto à manipulação genética, pergunto se será possível antever todas as implicações que a minha acção no presente terá na vida futura? Quem nos dá o direito de fazermos coisas cujas consequências futuras não podemos prever nem controlar?
Nesta era global novos riscos se colocam não só à humanidade, como também às condições da vida no planeta. Como já referi, não penso que estas duas preocupações se possam dissociar uma da outra. A dignificação da condição humana, objectivo maior da DUDH, não pode ser alcançada sem a recuperação de uma relação equilibrada com a natureza, capaz de preservar o valor da vida na sua integralidade cósmica. Não podemos, por isso, atraiçoar o futuro em nome dum passado e dum presente civilizacional que fez do homem dono e senhor da natureza, numa ética legitimadora de uma acção exploradora e destrutiva da própria natureza; lógica essa co-extensiva da exploração do homem pelo homem, na forma como não foi capaz de promover uma maior justiça distributiva.
O problema é que, nesta era global, a sociedade humana parece cada vez mais mergulhada no silêncio e na obscuridade de uma (in)consciência manipulada por sofisticadas técnicas de propaganda, que impedem um urgente alarme ou rebate de consciência e de revolta, capaz de inverter o sentido trágico deste destino humano no planeta. Não quero apresentar-me como um pessimista militante. Mas, se pessimista, como tenho sido acusado de ser, tão-só um pessimista activo, isto é alguém que, preocupado com esse destino, entende chamar a atenção dos outros à sua volta e lutar por um futuro mais justo para todos. Não podemos baixar os braços! Os fenómenos gritantes de injustiça no mundo humano e a eminência trágica da extinção da vida no planeta exigem do homem de hoje novas atitudes éticas de consciência, de luta e de compromisso.
Dou apenas alguns exemplos de domínios de preocupação actual:
• A formatação das consciências numa lógica individualista, consumista e hedonista, que vem desagregando a sociedade, ao destruir os laços de proximidade, convivência e sentido do outro, como base moral das relações sociais;
• O pensamento único, conducente ao chamado “homem unidimensional”;
• Os fundamentalismos laicos ou religiosos, geradores de múltiplas intolerâncias;
• A globalização do mal, expresso em duas guerras mundiais no século XX e no absurdo do terrorismo à escala global;
• O abuso dos poderes instituídos ou subliminares;
• A crise política das democracias ocidentais, apodrecidas pelo formalismo e pela sujeição à  “real-politik” e às mais elementares técnicas do markting;
• A ideologia tecnocrática da eficiência, do mérito e da competitividade, legitimadora de novas formas de miséria, como a pobreza, a exclusão social;
• O esgotamento dos recursos naturais que sustentam a vida humana no planeta, etc.
Concluo dizendo que a globalização, da qual a própria DUDH é também expressão, trouxe novos riscos, mas também novos desafios à humanidade e ao planeta. E se os riscos conhecidos estão mais ou menos enunciados, o desafio é efectivar e concretizar a defesa dos próprios direitos humanos até como forma de resolução e antecipação de novos riscos. A verdade é que o elementar direito à vida nunca esteve tão em risco como hoje. E o risco da vida, seja na sua dimensão humana de ser social e espiritual ou na sua dimensão natural de ser físico-corporal, é um problema de elementar direito humano.
Portanto, sem a defesa da vida na sua expressão global antropocósmica, de nada serve falarmos de direitos humanos."
 Nota: DUDH - Declaração Universal dos Direitos do Homem
Acácio Bárbara, in: acabar.no.sapo.pt/