Filosofia, lógica e democracia - por Desidério Murcho

"A novidade introduzida pelos gregos da antiguidade clássica não foi a tentativa de explicar os fenómenos do mundo sem recorrer a deuses — pois muitos filósofos e cientistas eram religiosos, e recorriam a explicações de carácter semi-religioso. A novidade foi esta: os filósofos da Grécia antiga expunham as suas ideias e desafiavam os interlocutores a discuti-las livremente. Isto gerou uma novidade absoluta na história da humanidade: a cultura da liberdade intelectual. Esta liberdade está na base da universidade e da escola moderna, apesar de a realidade académica e escolar ficar demasiadas vezes aquém do ideal fundador. A liberdade intelectual permite ter uma atitude crítica, opondo-se à atitude subserviente própria da natureza humana, sempre ciente das autoridades e hierarquias. Os gregos antigos introduziram uma atitude que dificilmente floresce em sociedades fechadas: o controlo do pensamento é a primeira coisa que todo o ditador, religioso ou político, procura impor. Ao longo de vinte e cinco séculos, assiste-se na civilização europeia ao constante conflito entre a exigência de liberdade de discussão e as atitudes autoritárias e hierárquicas, que aniquilam o estudo e a criatividade.
Nas sociedades fechadas — por força da Inquisição, do fascismo, do comunismo, do fundamentalismo ou da tradição — pode-se fazer filosofia durante alguns períodos, mas geralmente às escondidas e contra as próprias academias, que deviam ser os primeiros bastiões da liberdade de pensamento. Só nas sociedades liberais e democráticas, que respeitam a liberdade de opinião e expressão, a filosofia pode florescer. Mas não basta este respeito formal pela liberdade de opinião e expressão; é preciso um activo comprometimento institucional, cultural e pessoal com a discussão racional e os princípios a ela associados. A pior proibição do pensamento não é a explícita, mas a que se insinua e oculta, pois é mais difícil combater e reconhecer a sua existência. A proibição velada existe sempre que as academias não ensinam a discutir ideias, sempre que substituem a discussão de ideias pelo formalismo académico e sempre que se ensinam os estudantes a repetir diligentemente o que dizem os pensadores da moda.
Há duas estratégias principais para tornar a liberdade de discussão inócua.
A primeira consiste em reduzir a filosofia à sua história e a ciência aos seus resultados. Em ambos os casos, transmite-se ao estudante — e portanto à sociedade — a ideia de que nada há para pensar. A competência profissional e académica é uma questão de saber repetir muito bem o conhecimento empacotado que foi feito alhures. O que não se ensina é a fazer esse conhecimento. Ensinar a repetir acriticamente as ideias de Mill sobre a liberdade ou as ideias de Sagan sobre o espírito científico é uma das estratégias mais subtis para impedir isso mesmo que Mill e Sagan defendem: a liberdade fundamental para discutir ideias. Quando a filosofia se reduz à história da filosofia, o estudante fica impossibilitado de desafiar as Autoridades: torna-se uma blasfémia impensável perguntar se Kripke ou Heidegger terão ou não razão. Onde há liberdade para pensar não se pode aceitar a noção de blasfémia: tudo se pode discutir e todas as autoridades podem ser colocadas em causa.
A segunda estratégia para tornar a liberdade de discussão inócua é o relativismo cognitivo. Sob a capa de uma novidade triunfante, o pós-modernismo filosófico e cognitivo (não confundir com correntes artísticas com o mesmo nome) é incompatível com o ideal grego. Pois se é ingénuo pensar que existem verdades independentes de nós, se é óbvio que tudo é relativo, então não vale a pena discutir ideias. Discutem-se ideias quando se pensa que as nossas ideias são boas ou más, verdadeiras ou não, independentemente da nossa opinião sobre elas — e por isso queremos submetê-las à discussão pública e especializada, para procurarmos eliminar tanto quanto possível o erro e a ilusão. Galileu foi brutalmente silenciado pela Igreja Católica, e condenado a prisão domiciliária para o resto da vida. Mas pior, porque menos óbvio, seria a igreja ter declarado que há várias "bolhas de verdade", e que Galileu tem a sua, que todavia não é a verdade da igreja. Isto aniquila a possibilidade de progresso porque isenta as ideias da necessária avaliação crítica. Não há "bolhas de verdade": se Galileu tem razão, a Terra move-se. A Terra não fica imóvel quando quem pensa nisso é o Papa, passando a mover-se quando é Galileu que pensa nisso.
Dada a relação complexa que a democracia e a liberdade mantêm com a filosofia e o conhecimento em geral, estas estratégias não aniquilam apenas a filosofia e o conhecimento; ao fazê-lo, aniquilam também a própria possibilidade de uma democracia e liberdade genuínas e profundas. Ensinados a evitar a discussão real de ideias e a repetir ideias feitas, os profissionais — dos políticos aos médicos, dos juízes aos engenheiros, dos empresários aos cientistas e filósofos — não conseguem resolver os problemas da sua sociedade. A menos que tal solução venha em algum manual estrangeiro do qual se possa fazer um relatório muito certinho, a sociedade sente-se perdida e sempre à espera que um Encoberto venha resolver os seus problemas: a democracia está sempre sob ameaça, é sempre vista com desconfiança, nunca é parte integrante do tecido cultural. Sempre que há problemas, a solução que vem ao espírito assustado de todos é mais centralismo e menos liberdade — impedindo assim os profissionais de cada sector de resolver os problemas da sua própria especialidade.
É por isso que um ensino correcto da filosofia no secundário é uma oportunidade de ouro para contrariar uma cultura secularmente avessa à democracia e à liberdade. Mesmo que em filosofia se discuta o valor da democracia e da liberdade (temas centrais da filosofia política), esta discussão é em si um aprendizado para a democracia e a liberdade. Esta discussão, correctamente praticada nas escolas, é a única esperança de mudar uma cultura que, por ser fechada e avessa à liberdade, não consegue resolver os seus problemas nem atingir um grau de desenvolvimento e de bem-estar adequado.
Contudo, do mesmo modo que a pior censura de Galileu teria sido a relativização cognitiva das suas ideias, também o pior serviço que se pode prestar à filosofia e à sociedade é transfigurar a filosofia, tornando-a inócua e eliminando dela o seu cerne: a discussão livre de ideias. Ensinar filosofia correctamente é ensinar a discutir ideias filosóficas; não é ensinar a repetir as ideias de Kuhn ou de Popper, mas ensinar a discutir essas ideias. Terá Kuhn razão? Será a incomensurabilidade entre paradigmas uma realidade? Haverá de todo em todo paradigmas, como ele afirma? Será que a teoria falsificacionista de Popper é plausível? Ensinar filosofia é ensinar a formular estas e outras perguntas — e a dar-lhes resposta. E para isso a lógica — formal e informal — é fundamental.
Para cada maneira correcta de ensinar algo há mil maneiras de o desvirtuar, e o ensino da lógica é mais um exemplo desta máxima. Se tornarmos a lógica um mero formalismo de símbolos que nada dizem, se eliminarmos a sua componente informal, tornar-se-á um instrumento sem aplicação na discussão de ideias. As demonstrações da lógica são instrumentos para estudar a argumentação — não são o objecto de estudo da lógica. Uma demonstração é uma maneira de mostrar metodicamente que uma forma argumentativa é válida. É o fenómeno da validade, as suas componentes e subtilezas, que é estudado pela lógica formal. Mas a validade só derivadamente é uma propriedade de formas lógicas; a validade é primariamente uma propriedade de argumentos particulares. A lógica formal estuda o tipo de validade que pode ser estudado recorrendo exclusivamente à forma lógica, mas daqui não se segue que estudar este tipo de validade é abandonar o estudo da validade tal como ocorre nos argumentos reais que usamos todos os dias.
Argumentar é defender ideias com razões — e por isso o pior inimigo das sociedades fechadas. Quando Peter Singer foi sistematicamente impedido de proferir conferências nos países de língua alemã o que estava em causa não era saber se tinha ou não razão. O que estava em causa — e é isso que provoca horror e permite compreender a raiz do nazismo — era impedir que os seus argumentos fossem expostos e discutidos. Nenhum ditador quer defender as suas ideias com razões, ou mostrar com razões que as ideias a que se opõe são falsas. O que os ditadores querem é acabar com a possibilidade da argumentação, isto é, da discussão de ideias. A "Verdade" é apenas para ser anunciada, e compete aos súbditos adoptá-la sem pensar muito.
Também neste caso o relativismo cognitivo desempenha o seu papel nefasto. Se considerarmos uma ingenuidade pensar que se possa argumentar melhor ou pior, bem ou mal, porque tudo o que conta é o resultado — conseguir-se ou não persuadir o auditório — domesticámos a argumentação e retirámos-lhe a sua força libertadora. De instrumento de procura de verdades, a argumentação transforma-se em instrumento de manipulação irracional. Pior do que impedir alguém de defender as suas ideias com razões é relativizar toda a argumentação e declarar que, do ponto de vista do autor, aquele argumento é bom, mas, claro, tudo depende do ponto de vista — e de outro ponto de vista, aquele argumento é mau, pelo que é uma ingenuidade perder tempo a discutir argumentos.
O ensino da lógica na filosofia, para desempenhar o seu papel de instrumento argumentativo, não pode ser formalista nem relativista. Não pode ser formalista porque a lógica formal não pode analisar a argumentação sem usar a lógica informal. E não pode ser relativista porque as abordagens relativistas da argumentação são incapazes de dar conta da noção de falácia.
Um argumento é falacioso quando é mau mas parece bom. Esta noção central para a compreensão da argumentação não pode ser definida se aceitarmos o relativismo cognitivo na argumentação — pois nesse caso qualquer argumento será bom, desde que convença o interlocutor. Mas se qualquer argumento é bom desde que convença o interlocutor, o trabalho a desenvolver não é argumentativo, mas sim manipulador e até psicológico — basta pensar nos artifícios usados na publicidade e pelos políticos menos honestos para ver onde nos conduz o relativismo cognitivo em matéria de argumentação.
Um bom ensino da lógica e da filosofia terá de ensinar a avaliar argumentos reais e a apresentar bons argumentos, distinguindo-os dos maus. No ensino correcto da lógica e da filosofia aprende-se a discutir ideias, respeitando os seguintes princípios elementares do debate racional."
Desidério Murcho