Gnoseologia - Empirismo e Racionalismo

O fenómeno do conhecimento é, ao mesmo tempo, um dos mais banais e dos mais difíceis de esclarecer. Pode dizer-se que desde que o homem é homem houve acontecimentos, mas só já numa fase adiantada da evolução humana é que se reflectiu sobre o próprio acto de conhecer.
De princípio, conhecem-se simplesmente as coisas e julga-se que elas se conhecem tais como são; não se pensa no acto do espírito pelo qual se obtém o conhecimento. Mais tarde, o homem verificou que os sentidos e a própria inteligência erravam e, por isso, começou a desconfiar e a pôr em dúvida o valor do seu conhecimento. Foi esta experiência do erro que obrigou o espírito a voltar-se das coisas para si próprio, a fim de analisar o próprio acto de conhecimento, saber o que ele é, determinar a sua essência, descobrir o seu mecanismo e resolver o problema do seu valor. Esta marcha crítica, quanto ao conhecimento, é obra essencialmente filosófica e só apareceu, quando o espírito humano atingiu um certo desenvolvimento - foi destas reflexões que nasceu a teoria do conhecimento ou gnosiologia, que se designa geralmente por problema crítico.
A teoria do conhecimento tem precisamente por objecto o estudo da possibilidade do conhecimento, da sua origem da sua natureza ou essência, do seu valor e limites e, ainda, do problema da verdade. O acto de conhecer é a actividade do espírito pela qual se representa um objecto ou uma realidade. É um acto do espírito e não uma simples reacção automática mais ou menos adaptada às circunstâncias; não é propriamente um acto de conhecimento o sentar-me na cadeira, mas sim o saber porque me sento e como me sento. O resultado do acto de conhecer é uma representação e, portanto, conhecer é representar alguma coisa distinta do sujeito que conhece.
Há, por conseguinte, no conhecimento três elementos: o sujeito que conhece, o objecto conhecido e a relação sujeito - objecto. Este objecto pode ser exterior ao sujeito, como por exemplo, a caneta com que escrevo; pode ser interior, como a maior tristeza ou o meu pensamento; e pode, ainda, identificar-se com o próprio sujeito, como ao procurar conhecer-me a mim próprio. Mas mesmo no caso de identificação do sujeito com o objecto, não deixam de existir aí os três elementos referidos, pois o "eu" que é conhecido apresenta-se ao "eu' conhecedor como uma realidade distinta, mas em relação com ele.
A história da filosofia mostra-nos que os problemas do conhecimento interessaram mais ou menos todos os filósofos desde a velha Grécia, mas sem constituírem uma parte autónoma da filosofia. Com efeito, a teoria do conhecimento ou gnosiologia, como disciplina própria, só apareceu na Idade Moderna, a partir de Locke, que, no seu livro "Ensaio sobre o entendimento humano", tratou directamente da origem, natureza e valor do conhecimento. Desde então, a teoria do conhecimento mereceu as atenções de muitos filósofos que nela têm visto uma das partes da filosofia, com o seu valor e lugar próprio no conjunto dos problemas filosóficos.
A teoria do conhecimento abrange, portanto os seguintes problemas:
1- Possibilidade do conhecimento: É possível conhecer a verdade e possuir a certeza? Ou, ao contrário não podemos passar as dúvida?- Dogmatismo, Cepticismo, Criticismo.
2- Origem do conhecimento - o nosso conhecimento procede apenas da experiência? Ou só da razão que usa certos dados chamados apriorísticos para organizar a experiência ? Ou ainda procederá o conhecimento da experiência e da razão ? - Empirismo, Racionalismo e Empírico-racionalismo.
3- Natureza ou essência do conhecimento - o conhecimento será uma representação ou modificação do sujeito, provocado pelos objectos existentes, independentemente do sujeito conhecedor ? Ou uma modificação puramente subjectiva criada pela consciência? - Realismo e Idealismo.
"(...) Quando se atenta no mundo que nos rodeia, não pode negar-se que ele aparece como uma inata variedade de fenómenos e de relações em movimento perpétuo.
Um número infinito de fenómenos e de relações, agindo uns sobre os outros e a que nem o homem escapa - tudo está no todo que flui -, eis o que uma observação atenta não pode deixar de revelar.
Porém, isso far-nos-á desesperar de conhecer, de saber se é possível conhecer o mundo externo ? Terá de levar-nos à conclusão de que o homem é prisioneiro do seu próprio pensamento, sem possibilidade de conhecer o universo que o rodeia ? É claro que não.
Neste momento registemos esta primeira conclusão que nos leva a outra - é que o conhecimento é um processo, um processo complexo em que há, por um lado, o homem com o seu pensamento e, por outro, dele desligado, o universo externo. (... ) O conhecimento é um processo. Nele podem, porém, distinguir-se várias fases com aspectos qualitativos diversos (fisiológicos, psíquicos, lógicos). Da sensação à percepção, da imagem captada por esta à elaboração racional, e depois à acção material do homem, à sua prática individual e à prática social conjunta, tanto acumulada ao longo do tempo como de uma colectividade em dada fase da sua evolução, eis o conjunto de elementos que se integram para produzir o conhecimento.”
A Castro, A Evolução Económica de Portugal

1- O PROBLEMA DA POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO

Reflectir sobre o conhecimento consiste em questionar o mesmo, o que significa que a própria problematização do conhecimento implica também questionar o valor dos conhecimentos humanos, ou seja, indagar sobre os critérios que permitem reconhecer uni conhecimento como verdadeiro. O que é que assegura ao homem que dado conhecimento é verdadeiro e não falso? O homem pode conhecer a realidade e ter a certeza daquilo que conhece ?
Qual é então o critério que lhe permite reconhecer a verdade?
A estas questões os filósofos foram respondendo de modos diferentes, dando origem a diferentes concepções teóricas, das quais se destacam duas teorias opostas: uma afirmativa - o Dogmatismo -, e outra negativa - o Cepticismo.
1.1 O Dogmatismo
O dogmatismo é a doutrina que admite a possibilidade do conhecimento certo. Assim como o realismo é a atitude natural do homem face ao mundo, o mesmo é válido para o dogmatismo: a percepção de um qualquer objecto leva-o a crer, naturalmente, na existência do mesmo não pondo sequer a dúvida de que o conhecimento desse objecto possa ser posto em causa.
O dogmatismo corresponde, portanto, à atitude de todo aquele que crê que o homem tem meios para atingir a verdade, assim como para ter a certeza de que a alcançou, pois considera que existem critérios que lhe permitem distinguir o verdadeiro do falso, o certo do duvidoso. O dogmático não se confronta com a dúvida, na medida em que não problematiza o conhecimento, ele parte simplesmente do pressuposto da possibilidade do conhecimento, tomando este como um dado adquirido, como algo que nem sequer é posto em questão.
 "Dogmatikós em grego significa , "que se funda em princípios" ou ,é relativo a uma doutrina. (... ) Dogma é um ponto fundamental e indiscutível de uma doutrina religiosa. Na religião cristã, por exemplo, há o dogma da Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), a qual não deve ser confundida com a existência de três deuses, pois se trata apenas de um Deus é uno . Não importa se a razão não consegue entender, já que é um princípio aceite pela fé e o seu fundamento é a revelação divina. (... ) Quando transpomos esta ideia de dogma para áreas estranhas à religião, ela passa a ser prejudicial ao homem que, uma vez, na posse da verdade, se fixa nela e abdica de continuar a busca. O mundo muda, os acontecimentos sucedem-se e o homem dogmático permanece petrificado nos conhecimentos dados de uma vez por todas. Refractário ao diálogo, teme o novo e não raro torna-se intransigente e prepotente. Disse Nietzsche filósofo alemão do século XIX, que "as convicções são prisões". Quando o dogmático resolve agir, o fanatismo é inevitável. Em nome do dogma da raça ariana, Hitler cometeu o genocídio dos judeus nos campos de concentração."
Aranha, e Martins, Filosofando - Introdução à Filosofia

 "Dogma em grego significa, o que se manifesta como bom, opinião, decreto, doutrina. (...) Em filosofia, contudo, nunca a autoridade é, só por si, argumento decisivo: a própria verdade necessita de uma fundamentação interna que satisfaça as exigências da razão. Por isso, o termo adquiriu, frequentemente, sentido pejorativo, significando a adesão a alguma doutrina, sem prévia fundamentação crítica. O problema levantou-se. sobretudo, a propósito do problema gnosiológico.(...)"
Fragata, J."Dogmatismo " in Enciclopédia Logos, p. 145
A atitude habitual do homem comum é, de certo modo, próxima do dogmatismo. Habitualmente, não nos questionamos acerca do valor do conhecimento, não pomos em causa a nossa capacidade para estabelecer a verdade em determinadas áreas, não procuramos indagar da possibilidade da relação cognitiva sujeito-objecto e dos fundamentos dessa relação cognitiva. Para o senso comum, aquele conhecimento vulgar e banal, superficial e acrítico, a existência do objecto em si não é questionada, nem sequer a adequação ou inadequação do nosso conhecimento sensivel a esse objecto: "O senso comum responde logo que sim, que esse algo existe".
1.2 O Cepticismo:
O cepticismo é uma atitude pessimista que o homem tem face à possibilidade de poder alcançar um conhecimento verdadeiro; é a doutrina segundo a qual o espírito humano não pode atingir qualquer verdade com certeza absoluta. O cepticismo, na sua forma radical, nega totalmente a capacidade do sujeito para conhecer algo verdadeiramente, o que acaba por ser uma posição insustentável e contraditória, pois ao afirmar a impossibilidade de alcançar um conhecimento verdadeiro, está já a supor uma verdade - a verdade de que não há nada de verdadeiro.
Esta posição foi assumida, pela primeira vez, por volta de 270 a.C., por Pirrón. Este pensava que nada pode ser considerado verdadeiro ou falso, bom ou mau, belo ou feio, uma vez que o espírito é incapaz de afirmar ou negar seja o que for, por falta de motivos sólidos para o fazer. É, pois, de evitar afirmar ou negar o que quer que seja, isto é, deve suspender-se o juízo (epoché).
Já na Idade Moderna, Montaigne e Hume manifestaram uma atitude céptica; o primeiro no campo da reflexão ética, o segundo quanto à metafísica. De facto, o empresta David Hume, ao reduzir o conhecimento possível aos limites do observável (da experiência), nega a possibilidade de se atingir a certeza e a verdade reduzindo o conhecimento à probabilidade e plausibilidade.

 "Skepticós em grego significa "que observa", "que considera". O céptico tanto observa e tanto considera, que conclui pela impossibilidade do conhecimento. Confrontando as diversas filosofias, percebe que são diferentes e ás vezes contraditórias, concluindo que é impossível aderir a qualquer uma delas.
Enquanto o dogrnático se apega à certeza de uma doutrina, o céptico conclui pela impossibilidade de toda a certeza e, neste sentido, considera inútil esta busca infrutífera que não leva a lugar nenhum. "
Aranha, e Martins o.p.citad
1.2.1 David Hume e o Cepticismo:
(...) É pois em vão que tentaremos determinar um só acontecimento, ou descobrir uma causa ou um efeito sem o auxílio da observação e da experiência.
Podemos, a partir daí, descobrir a razão pela qual nenhuma filosofia razoável e modesta conseguiu alguma vez indicar a causa última de uma operação natural, nem mostrar claramente a acção do poder que produz um só efeito no universo. Há acordo geral quando se afirma que o esforço último da razão humana é o de reduzir os princípios que produzem os fenómenos naturais a uma maior simplicidade e os numerosos efeitos particulares a um pequeno número de causas gerais por meio de raciocínios tirados da analogia, da experiência e da observação. Mas será em vão que tentaremos descobrir as causas destas causas gerais; e nunca ficaremos satisfeitos com uma explicação particular. Estas causas e estes princípios últimos serão sempre completamente subtraídos à curiosidade e investigação do homem.»
D. Hume, Ensaio sobre o entendimento humano.

2- O PROBLEMA DA ORIGEM DO CONHECIMENTO

De onde nos vêm as representações que nos servimos para compreender a realidade? De onde procede, fundamentalmente, o conhecimento ? Para que o conhecimento se possa considerar um autêntico conhecimento, é preciso que seja universal e necessário e, ao mesmo tempo, se aplique à realidade, que é singular e contingente. De onde deriva o conhecimento, de modo a satisfazer estas duas condições ? Se procede apenas da experiência satisfará a segunda, mas não a primeira - se é obtido só pela razão, terá carácter universal e necessário, mas não valerá da realidade.
Foi esta dificuldade que dividiu todos os filósofos em duas correntes opostas Empirismo e Racionalismo -, que o Empírico - Racionalismo procura conciliar. O Empirismo diz-nos que o conhecimento provém fundamentalmente da experiência sensível e a esta se reduz, não podendo elevar-se acima dos dados experimentais - por isso se diz que o conhecimento é "a posteriori". O Racionalismo, pelo contrário, valoriza, sobretudo a razão, que organiza, unifica e dá sentido aos dados recebidos espontaneamente da consciência. O Racionalismo, não encontrando na experiência, singular e concreta, explicação para o carácter geral e abstracto do conhecimento, afirma que a razão recebe certas ideias gerais que lhe servem para conhecer a realidade, ou cria certos dados chamados apriorísticos, com os quais organiza e interpreta a experiência - por isso se diz que o conhecimento é "a priori". Finalmente, a corrente Empírico-racionalista afirma que o conhecimento procede da experiência, mas não se reduz à experiência, para estes o conhecimento resulta dum processo de transformação de uma matéria prima dada pelos sentidos e elaborada pela capacidade organizacional do sujeito.
2.1 O Racionalismo:
Descartes, Leibniz e Spinoza são alguns dos representantes do racionalismo. Esta doutrina filosófica afirma que o conhecimento humano tem a sua origem na razão, que possui, ou representações inatas, ou capacidade de criar representações (Ideias gerais) dos objectos, às quais a realidade se submete. Deste modo, é sobre as ideias inatas que (segundo Descartes são as únicas que obedecem ao critério da clareza e da distinção) se constitui um conhecimento que pode ser considerado verdadeiro porque logicamente necessário e universalmente válido.
Os juízos determinados pela experiência não apresentam essas características, por isso, concluem os racionalistas, o verdadeiro conhecimento não pode fundamentar-se na experiência, mas sim na razão.
A matemática, um conhecimento predominantemente conceptual e dedutivo, é o modelo de conhecimento que serviu de base à interpretação racionalista, pois todos os conhecimentos matemáticos derivam de alguns conceitos gerais tomados como ponto de partida dos quais se concluem todos os outros, de acordo com as leis do pensar correcto, que foram definidas, como sabemos, pela ciência da lógica.
2.2 O Empirismo:
Enquanto que os filósofos racionalistas adoptam as matemáticas como o modelo de conhecimento a construir, Locke, Berkeley e Hume adoptam as ciências experimentais como modelo de conhecimento. Daí que todo o conhecimento comece pelos dados oriundos da experiência sensível, ao mesmo tempo que negam que a razão possua ideias inatas.
Vejamos agora um texto muito célebre, no qual Locke retoma a antiga tese da alma como "tábua rasa", na qual só a experiência inscreve conteúdos:
"Admitamos pois que, na origem, a alma é como que uma tábua rasa, sem quaisquer caracteres, vazia de ideia alguma: como adquire ideias? Por que meio recebe essa imensa quantidade que a imaginação do homem, sempre activa e ilimitada, lhe apresenta com uma variedade quase infinita? Onde vai ela buscar todos esses materiais que fundamentam os seus raciocínios e os seus conhecimentos? Respondo com uma palavra: à experiência. É essa a base de todos os nossos conhecimentos e é nela que assenta a sua origem. As observações que fazemos no que se refere a objectos exteriores e sensíveis ou as que dizem respeito às operações interiores da nossa alma, que nós apercebemos e sobre as quais reflectimos, dão ao espírito os materiais dos seus pensamentos. São essas as duas fontes em que se baseiam todas as ideias que, de um ponto de vista natural, possuímos ou podemos vir a possuir."
  John Locke, Essay concerning human understanding, Collins, Livro 1, cap. II, p. 68
De facto, os empiristas, para justificarem a sua posição, vão buscar os argumentos às ciências experimentais, à evolução do pensamento e do conhecimento humanos. Ou seja, se as ideias fossem inatas, como pretendem os racionalistas, como justificar a sua ausência nas crianças? Por outro lado, nas ciências experimentais o conhecimento resulta da observação dos factos, na qual a experiência desempenha um papel fundamental. Deste modo, os empiristas são levados a privilegiar a experiência em detrimento da razão.
in esec-emidio-navarro-alm.rcts.pt