Misantropias - por Fernando Serra

Conto as almas solitárias na esplanada das noites sempre iguais. Quantas? Pouco importa. Almas gémeas da minha, gritam silêncios nas planícies da solidão disfarçada, o olhar vazio caído em coisa nenhuma.                                                                                                
Tal como tu dizias, Mário de Sá Carneiro, também "… dentro de mim há um fardo que não pesa, mas que maça…". E, tal como a ti, me atormenta também a "comichão que não passa" de um quotidiano espapaçado no torpor dos dias opacos, estaticamente imutáveis.
Imobilizo-me na raiva que me vem da gritaria inconsequente e selvagem de uma juventude ululante, frente aos televisores da bola, gente pequena postada na cultura da parasitice, a mesma que um dia será chamada a servir um país a boiar há séculos em esperas inúteis.
Para meu desespero, o sossego é sempre coisa por chegar. Colados a mim, fedelhos de palmo e meio aguçam as cordas vocais em guinchos histéricos e insuportáveis. Os progenitores das "crias" abstraem-se embalados na apatia do diálogo morno e fútil que o fumo do cigarro atira para o saguão do dia-a-dia insosso e pardo.
As noites quentes são uma passerelle de exibições. Desfilam decotes que desnudam seios a abanar vaidades, e minguam saias que escondem ainda o que sobra de coxas com glúteos voluptuosos, mas iguais a todos os outros.
Velhos de mão dada seguram o que resta ainda de um contrato antigo, fatalmente desgastado por percursos sem retorno.
Os bêbados inofensivos de outrora que se arrastavam pelas esquinas articulando sons que o vinho tornava indecifráveis são os energúmenos sem lei que hoje se instalam nas esplanadas vociferando urros lubrificados por rios de cerveja. Rapam o crânio na ilusão de lhes renascer a inteligência que a estupidez definitivamente atirou para a montureira da imbecilidade. Quanto mais sórdida a miséria, maior a ostentação da decadência mental. Sempre assim foi e há-de ser.
Aquela velha precoce que o raquitismo da infância condenou a não mais que metro e meio de altura e a indigência tornou ainda mais pequena espoja-se num banco de pedra ainda quente do sol abrasador do dia, segurando um saco de plástico amarrotado e sujo. Já não suplica a esmola como dantes, porque o cansaço e a indiferença há muito lhe silenciaram os murmúrios. Escrava vitalícia da caridade, limita-se agora a aparar na mão encardida os cêntimos sobrantes de alguma carteira magra.
Um velho quezilento à beira dos setenta, que a beatice de um seminário longínquo atirou para a superficialidade da mentira fútil e do egocentrismo, caminha, anónimo, lambendo um sorvete com a mesma volúpia com que contempla todos os dias o umbigo das suas preocupações caricatas e gratuitas. Nada existe para além de si próprio, senão ele próprio, mergulhado na arrogância de si próprio.
Deixo cair o olhar num casal que se aproxima espreitando a mesa vaga que melhor se enquadre na plateia do circo. Ele, careca e grosseiro a quem uns quarenta bem puxados já impuseram degradante rotundidade abdominal, precede imediatamente a mulher de trinta, ufana de um seio de proeminências duvidosas, e ofuscante na arrogância de um salto desmesuradamente alto. A calça branca, muito justa, envolve-lhe musculaturas torneadas por abstinências cruéis e ginásios de sofrimento. Fetiches doirados e sonoros que uma mão de dedos longos impedem cair-lhe do pulso são o remate final de misticismo barato que faltava ao manequim.
Tudo se afiguraria normal tendo em conta o mercado de exibições em que se convertem as esplanadas das noites citadinas de estios quentes, onde cada aspirante e actor, consoante o engenho, se insinua o melhor que sabe, desde estendais de beijinhos colectivos e sorrisos de circunstância à exibição lasciva de intencionalidades disfarçadas (com carácter de urgência…), próprias do ardil e das subtilezas do homem e da mulher.
De facto, tudo, enfim, pareceria razoável dentro da aberração que escondem certas razoabilidades, não fora aos olhos do observador inveterado a extravagância irritante do sujeitinho careca e gordurento a tocar obstinadamente os quadris da beleza que se equilibrava à sua frente, como o moleiro de outrora tocava a burra obediente no carrego da farinha, na intenção única de avisar a navegação de que o espécimen raro que levava pela arreata era pertença sua, exclusivamente sua e de usufruto intransmissível. Que todos o saibam! "Deste pomar, só eu colho…", que é como quem diz "neste pomar só eu entro…". Convicções ingénuas! – "Ninguém é de ninguém… até quem nos abraça…", diz o velho bolero carioca…
E ei-los que surgem. Não podiam faltar. Os pindéricos da política. De tantos, felizmente apenas seis. Vêm descendo a escadaria que um Polis manco e vesgo concebeu para quadrúpedes, porque apenas os desta condição conseguem percorrê-la com a comodidade que os humanos nunca conheceram.
Após mais um concílio de tretas e protagonismos deixam o senáculo e descem ao proscénio das exibições. Vêm apressados, que é coisa própria de gente importante. À cabeça do desfile, o mandador, em camisa de manga comprida que o provincianismo saloio e os trinta e cinco graus centígrados da noite ainda não conseguiram substituir por manga curta, cómoda e higiénica. É um homem pequeno ao qual a presunção disfarçada dá uns míseros centímetros mais. Com ele ombreia o ordenança servil e venerador e, a precedê-los, a matilha do staff edil que tudo decide nas costas do Zé-povinho alarve e acomodado.
Param. Distribuem beijinhos e vigorosos apertos de mão aos passantes que neles vêem ainda uma casta diferente, superior, quase mítica. Dando-se ares de gente comum, passeiam o olhar discreto pela esplanada na busca de alguém apanhado a mirá-los… - "…olha o olhar que têm os homens da política!...", avisava António Nobre há cento e cinquenta anos!... Os dossiers gordurentos colados à cova do braço denunciam duelos venenosos urdidos na cumplicidade do ar condicionado… São estes, à sua escala, os salvadores da Pátria, rendidos à ganância planetária da vã glória de mandar.
"… E vós, nojentos da política, que explorais eleitos o patriotismo, maquereaux da pátria que vos pariu ingénuos e vos amortalha infames…" – se foi assim que há noventa e cinco anos os definiste, oh, génio Almada Negreiros, "poeta de Orpheu, futurista e tudo", acredita que da mesma forma outros o farão por ti nos milénios mais próximos, engrossando a sua ira em arsenais gigantescos de manguitos!
Já vejo a prostituta que acabou de sair de casa como a osga sai à noite do buraco da telha vã, à caça de sustento. Em qualquer comunidade há sempre uma, pelo menos, que assume a sua condição sem pudores nem preconceitos. Caminha ondulante na atmosfera quente da avenida. Selecciona um banco bem iluminado. É imperioso que mostre o corpo semi-desnudado, de perna sensual e seio concupiscente a puxarem lubricidades e estertores carnais. Senta-se e dedilha o telemóvel. Se o peixe tarda em "picar", muda de banco no desespero de uma sobrevivência ameaçada, como o saltimbanco espreita habilmente na feira o lugar mais estratégico.
"A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos". Quando um dia o afirmaste, Álvaro de Campos, tu é que sabias (oh! se sabias…) que a humanidade (certa humanidade) não deixará nunca de avançar senão na razão directa das coisas banais e inúteis. Quando o nada se instala, o futuro estatela-se no charco da impavidez e da inércia. Depois, fica o lamento secular de gerações a navegarem um mar de esperanças eternamente adiadas.
Ergo-me, cansado, da mesa cúmplice que outro saltimbanco decerto imediatamente ocupará e distancio-me do bulício que me tresanda a tédio e a bafio. Decididamente vou estender-me no leito da madrugada, a mãe implacável e fatal de todas as minhas negações, de todos os meus impossíveis.
Fernando Serra in gazetadointerior.pt