O problema do sentido da existência

Quem é que, num momento ou noutro, ao olhar um céu nocturno, ao contemplar uma flor ou ao reflectir sobre si próprio e os outros seres humanos, não se interrogou já acerca da razão de ser disto tudo ou não se perguntou por que razão está aqui e como deve viver para que a sua vida tenha sentido? Estas são questões que têm intrigado os homens desde tempos imemoriais e são certamente algumas das perguntas mais importantes que o ser humano pode colocar sobre si próprio. Há mesmo quem, como Albert Camus, vá ao ponto de afirmar que estas são as únicas questões verdadeiramente importantes:
Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. São apenas jogos; primeiro é necessário responder. (...)
Se pergunto a mim próprio como decidir se determinada interrogação é mais premente do que outra qualquer, concluo que a resposta depende das acções a que elas incitam, ou obrigam. Nunca vi ninguém morrer pelo argumento ontológico. Galileu, que possuía uma verdade científica importante, dela abjurou com a maior das facilidades deste mundo, logo que tal verdade pôs a sua vida em perigo. Fez bem, em certo sentido. Essa verdade não valia a fogueira. Qual deles, a Terra ou o Sol, gira em redor do outro, é-nos profundamente indiferente. A bem dizer, é um assunto fútil. Em contrapartida, vejo que muitas pessoas morrem por considerarem que a vida não merece ser vivida. Outros vejo que se fazem paradoxalmente matar pelas ideias ou pelas ilusões que lhes dão uma razão de viver (o que se chama uma razão de viver é ao mesmo tempo uma excelente razão de morrer). Julgo pois que o sentido da vida é o mais premente dos assuntos ― das interrogações.
Albert Camus, O Mito de Sísifo, pp. 13-14
Parte deste interesse pela questão do sentido da vida parece ser intelectual e resultar da curiosidade própria do ser humano, do seu desejo natural de saber, como dizia Aristóteles. Somos seres inteligentes num universo que nos deixa constantemente perplexos e no qual cada nova descoberta, ao mesmo tempo que sacia a nossa curiosidade, aumenta o nosso deslumbramento. É natural, portanto, que queiramos saber o que é o universo e que papel — se é que algum — nos está nele reservado.
Mas uma parte substancial do interesse resulta também da sua grande importância para a forma como vivemos a nossa vida. Teriam Hitler ou Estaline mandado matar milhões de pessoas se soubessem que Deus tem um propósito para nós que requer um comportamento moral exemplar? E teria S. Francisco Xavier empreendido a evangelização do Oriente se soubesse que Deus não existe ou, se existe, não tem qualquer propósito para o universo e para homem? É difícil imaginar que a resposta a estas questões fosse em ambos os casos afirmativa. Por conseguinte, a maneira como cada um, de forma mais ou menos consciente, responde a esta questão determina o modo como encara a vida e influencia as decisões que toma.
E, no entanto, apesar deste grande interesse, a questão é tudo menos clara. Quando se pergunta qual o sentido da existência, o que se quer exactamente dizer com isso? O que significa a expressão «sentido da existência»?
Algumas escolas filosóficas recusam-se a aceitar que se possa dizer que a existência tem sentido. É o caso do positivismo lógico e da escola da linguagem comum, que se desenvolveram na primeira metade do século XX em Viena e Oxford, respectivamente. Do ponto de vista dessas escolas, apenas as palavras e as frases têm sentido. Como a vida não é nem uma coisa nem outra, ela não pode, segundo elas, ter qualquer sentido e, portanto, dizer que a vida tem sentido é incoerente. Estas escolas, claro, entendem a palavra «sentido» no sentido de «significado linguístico», como quando perguntamos qual o sentido de uma frase ou dizemos que uma frase não tem sentido. Num caso estamos a perguntar qual o significado da frase e no outro a afirmar que ela não tem significado. Quando nos capítulos iniciais aprendeste a distinguir frases declarativas com sentido (que expressam proposições) de frases declarativas sem sentido ou absurdas (que não expressam proposições), a palavra «sentido» nesses casos estava a ser utilizada com o sentido de «significado linguístico». Se entendermos que a palavra «sentido» quer dizer isto, então a vida, como é óbvio, não tem qualquer significado e estas escolas filosóficas têm toda a razão ao recusarem dizer que a vida tem sentido. No entanto, a palavra sentido não tem apenas o significado de «significado linguístico». Usemos um exemplo para tornar claro este ponto.
No livro As Sereias de Titã, Kurt Vonnegut, um escritor americano de ficção científica, narra como a história humana foi manipulada de modo a tornar os seres humanos capazes de fabricar uma pequena peça de metal para uma nave espacial que se dirige do planeta Tralfamadore, na Pequena Nuvem de Magalhães, para uma galáxia distante, com a missão de entregar uma mensagem de saudações, e que se avariou ao passar pelo Sistema Solar.
Se, tendo a história de Vonnegut por referência, perguntarmos qual o sentido da vida humana, a resposta terá forçosamente de ser «fabricar uma peça para permitir entregar uma mensagem numa galáxia distante». Esta resposta sugere que a palavra «sentido», além de ter o significado que acabámos de ver, também pode, pelo menos em certos contextos, querer dizer propósito, finalidade ou desígnio, como quando, por exemplo, perguntamos «Qual o sentido de fazer sofrer um animal indefeso?». Por conseguinte, a pergunta sobre o sentido da vida pode também significar «Qual o propósito ou a finalidade da vida?». Nesta acepção, a pergunta está longe de não ter sentido e de ser incoerente. Já não se trata de dizer que a vida tem significado, no sentido que o termo tem em linguística, mas de saber qual o objectivo da vida. É mesmo com este sentido, com o sentido de «objectivo» ou «finalidade», que a expressão «sentido da existência» é geralmente usada quando se fala do problema do sentido da vida.
A história de Vonnegut contém ainda uma outra implicação. É impossível não ter a impressão de que se a finalidade da vida humana é produzir uma peça insignificante para permitir levar uma mensagem, também ela insignificante, a uma galáxia longínqua, a vida tem pouco que a faça merecer ser vivida. Isto sugere que para que a vida tenha sentido não basta que tenha um propósito ou finalidade. É também necessário que esse propósito tenha valor, que seja de alguma forma importante. No filme de João César Monteiro, Recordações da Casa Amarela, o personagem principal, João de Deus, colecciona pêlos púbicos de jovens donzelas. É evidente que a sua vida tem um objectivo, mas é também evidente que não tem qualquer valor, visto que esse objectivo não tem ele próprio qualquer valor. Coleccionar pêlos púbicos pode fornecer uma finalidade à vida, mas é difícil imaginar que possa fazer com que mereça a pena vivê-la, mesmo que isso torne a pessoa que o faz imensamente feliz. A razão está em que quando nos interrogamos acerca do sentido da vida não queremos apenas saber qual o objectivo que ela pode ter. Procuramos também uma justificação para a nossa existência, algo que lhe dê valor e que a faça merecer a pena ser vivida. Perguntar, então, qual o sentido da vida implica perguntar como devemos viver para que a nossa vida mereça a pena ser vivida. Talvez a melhor forma de entenderes isto seja imaginares-te no fim da vida, já muito idoso, às portas da morte, olhando para o passado e perguntando a ti mesmo se a tua vida teve sentido (ou, se preferires, uma vez que o resultado é o mesmo, imaginares-te agora a perguntares a ti mesmo como deves viver a tua vida para que, uma vez velhinho, possas dizer que ela teve sentido). Chegarás facilmente à conclusão de que há apenas duas coisas que interessam para responder a essa questão:
1) saber se a tua vida teve um ou mais objectivos; e
2) saber se esse objectivo ou objectivos têm valor.
Se a tua resposta a estas perguntas for em ambos os casos afirmativa, então a tua vida teve sentido. Se, pelo contrário, nenhuma das tuas respostas ou se apenas uma foi afirmativa, então a tua vida não teve sentido.
Alguns pensadores afirmam que para que a vida tenha sentido é não apenas necessário que tenha um objectivo com valor como que esse objectivo possa ser alcançado. Isto, no entanto, parece não ser verdade. Se fosse, a vida de alguém que se dedicasse a um objectivo inquestionavelmente meritório, mas, dado o estado actual do mundo, inalcançável, como, por exemplo, acabar com a exploração dos animais pelo homem, não teria sentido, mesmo que, ao tentar atingir esse objectivo, essa pessoa tivesse contribuído de forma significativa para que os animais fossem melhor tratados. Além disso, dado que a esmagadora maioria dos homens não consegue atingir os seus objectivos, se só aqueles que atingissem o seu objectivo pudessem ter uma vida com sentido, o número das pessoas com uma existência com sentido seria certamente muito reduzido.
Outros pensadores têm uma perspectiva inversa e afirmam que não é o objectivo que dá sentido à vida, mas o processo pelo qual se procura alcançar esse objectivo.
«Se os construtores de uma grande e florescente civilização antiga pudessem de algum modo ver agora os arqueólogos desenterrar os insignificantes vestígios do que outrora realizaram com grande esforço — ver os fragmentos de potes e vasos, umas quantas estátuas partidas, e outros sinais de uma outra época e grandeza —, poderiam na verdade perguntar a si próprios qual o propósito de tudo isso, se era naquilo que tudo se tinha transformado. No entanto, as coisas não lhes pareceram assim na altura, porque era precisamente o acto de construir, e não o que acabou por ser construído, que dava sentido à sua vida.»
Richard Taylor, “The Meaning of Life” in Klemke, E. D., The Meaning of Life, p. 174
Este ponto de vista também não parece correcto, uma vez que viola duas fortes intuições dos seres humanos. Em primeiro lugar, o comportamento das pessoas parece constantemente mostrar que acreditam que são os objectivos que dão sentido à sua vida e não os processos pelos quais os alcançam. Em segundo lugar, se fossem os processos por intermédio dos quais atingimos os objectivos das nossas vidas que lhes dão sentido, então ter uma vida com sentido consistiria simplesmente em viver a vida e, portanto, a vida de praticamente toda e qualquer pessoa teria, nesse caso, sentido. Assim, quer a ideia de que a vida tem sentido apenas quando alcançamos os nossos objectivos quer a ideia de que aquilo que dá sentido à vida é o que fazemos para atingir os nossos objectivos parecem estar erradas. A primeira porque implica que apenas um número muito limitado de pessoas tenha uma vida com sentido; e a segunda porque implica que toda a gente tem uma vida com sentido (desde que, evidentemente, tenha objectivos e faça alguma coisa para os atingir). Não deve ser preciso ser santo para ter uma vida com sentido e não se pode ser serial killer e ter uma vida com sentido. A verdade deve estar algures no meio.
Podemos, portanto, concluir que o objectivo poder ser alcançado não é uma condição para que a vida tenha sentido. Assim, há apenas duas condições que são necessárias e suficientes para que a vida tenha sentido, a saber, que a vida tenha um ou mais propósitos, finalidades ou objectivos e que esse objectivo ou esses objectivos tenham valor.
in filedu.com