Ócio - por Anselmo Borges

Entre as muitas características que nos distinguem dos outros animais, como a linguagem duplamente articulada, a autoconsciência, o pensamento abstracto, a orientação para o mundo como um todo e a capacidade de distanciamento da imediatidade no espaço e no tempo, a elaboração de teorias científicas, a avaliação segundo juízos morais, está também o trabalho. O homem também se define como homo faber. Karl Marx viu bem: "O homem diferencia-se dos animais a partir do momento em que começa a produzir os seus meios de vida."
Enquanto o animal colhe o que a natureza lhe oferece, o homem transforma-a. Trabalha para satisfazer as suas necessidades, estabelecendo uma relação de intercâmbio com a natureza: obtém dela o que lhe falta e, por outro lado, ao transformá-la, transforma-se a si mesmo. Mundanizando-se, o homem humaniza o mundo e humaniza-se a si próprio, autorrealiza-se. Ao mesmo tempo que elabora os produtos de que precisa, aperfeiçoa a natureza e forma-se a si mesmo teórica e praticamente.
Com a complexificação do mundo do trabalho, assiste-se à sua divisão e a uma teia, também ela complexa, de relações laborais e sociais, configuradoras da identidade própria. Percebe-se a importância decisiva desta configuração, quando se pensa em quem já não encontra trabalho e cai no desemprego: não só não tem meios de subsistência como é marginalizado, sentindo-se inútil por não contribuir para a realização do bem comum.
No trabalho, é preciso considerar um duplo aspecto. Por um lado, forma a pessoa e contribui para a realização da sociedade - deve-se pensar num sentido abrangente do trabalho: trabalha o agricultor, o construtor, o engenheiro, o médico, o professor, etc. -, mas, por outro, o trabalho apresenta-se como fardo e castigo, como diz a próprio étimo: tripalium, instrumento de tortura.
Neste contexto, aparece o ócio, que provém do latim otium, vinculado a scholê, no grego - é daqui que provém escola. Aqui, ócio significa estar livre dos negócios da política e das actividades económicas, para poder dedicar-se à contemplação, à festa, à alegria e à busca da verdade. Como diz Platão, os filósofos "desfrutam do tempo livre e preparam os seus discursos em paz e em tempo de ócio. Apenas os preocupa alcançar a verdade". Vemos aqui a síntese da importância que Platão atribuía ao ócio, vinculando-o à liberdade (ter tempo livre e ser livre), à verdade, que deve ser procurada sem a pressão do tempo, e à filosofia enquanto procura livre da verdade.
A questão, na antiguidade, é que só os livres se podiam dedicar ao ócio da liberdade, pois os escravos encarregavam-se das tarefas materiais - aliás, ainda hoje, nos preceitos da Igreja se fala em "trabalhos servis". Por isso, Aristóteles viu bem que era necessário o bom governante criar condições para a contemplação, observando que o tirano procura que ninguém tenha ócio.
Na modernidade, esbate-se o espírito da verdade como contemplação, para vincular ciência, domínio da natureza e utilidade. Francis Bacon marca essa viragem: "o que é mais útil na prática é ao mesmo tempo o mais verdadeiro na ciência" e: "scientia est propter potentiam" - a ciência é por causa do domínio. E, lentamente, com a segunda revolução industrial, chegou-se ao oxímoro da "indústria do ócio".
Onde está o predomínio: no trabalho ou no ócio? Como conclui Gabriel Amengual, inspirador deste texto, se se puser o acento no trabalho, então o ócio pode tornar-se um simples meio para o trabalho - descansar para recuperar forças e trabalhar, como se o homem fosse feito apenas para produzir e trabalhar. Se o decisivo for o ócio, então o trabalho acaba por ser considerado negativo e frustrante, pois é puro negócio, negação do ócio, e paradoxalmente, o ócio não passa de "compensação para a frustração do trabalho".
Afinal, trabalho e ócio são complementares e o homem tem de ser visto de modo harmonioso e pleno, nas sua múltiplas dimensões: "A dimensão laboral e cultual-cultural, social e pessoal, activa e contemplativa, produtiva e artística, a dimensão do dever e a do desejo, a determinação e a liberdade."
Anselmo Borges - in DN