Terrivelmente humano - por A. Marinho e Pinto



Perante a imensidão da tragédia humana, como reage o homem ao longo da História? Em regra, de duas maneiras: ou aceita o seu destino com resignação e depõe o seu sofrimento na ara de uma qualquer divindade ou então revolta-se. E quando se revolta ele exprime sempre nesse gesto uma negação. Umas vezes recusa a sua própria existência e nega a sua própria condição humana. Não aceita o lugar que lhe foi reservado na vida e no Mundo e revolta-se contra o seu Deus, usando a única arma que sabe manejar que é a blasfémia. É a revolta existencial que o levará quase sempre ao suicídio. Outras vezes, porém, o homem insurge-se contra o seu lugar na sociedade. Acusa não Deus mas outros homens e ergue-se contra o soberano. Empunhando a espada, ele parte para a aventura revolucionária, que não raro o conduz a extremos de violência coletiva. É a revolta social que inevitavelmente o levará ao homicídio. (Nos tempos atuais há ainda um "tertium genus": a "indignação", ou seja, uma espécie de revolta domesticada que se esvai nas margens sem quaisquer consequências pessoais ou históricas).
Ao escolher a morte como solução, ambos os revoltados (existencial e social) proclamam uma natureza superior à ordem estabelecida. Insurgindo-se contra a injustiça e a servidão ambos recusam a condição histórica de dominados. Apenas com uma diferença: enquanto o revoltado existencial quase sempre morre na solidão do seu drama pessoal, o revoltado social acaba, em regra, por subir ao cadafalso, pois só aí, perante a multidão, ele poderá proclamar a condição suprema a que aspira - a de mártir. Ele não ignora que assim vai adquirir uma força superior à do próprio poder que o aniquila. Iluminado por uma intuição terrível, ele sabe que o reinado do imperador termina inexoravelmente com a sua morte, enquanto o do mártir começa precisamente no momento da sua execução. A coroação de um mártir é sempre póstuma e o seu reinado pode estender-se por séculos ou milénios. Um revolucionário mártir é sempre mais temível depois de morto. Quem num gesto derradeiro de revolta dispõe da própria vida responde de forma clara e definitiva a todas as angústias que o atormentaram durante a existência.
Por isso é que ao longo dos tempos os condenados eram, antes de morrer, submetidos aos piores ultrajes e sofrimentos com vista, precisamente, a reduzi-los à condição infame de objetos. Todos nos recordamos dos suplícios que eram infligidos aos condenados antes de serem atirados ainda vivos para as fogueiras da Inquisição. E isso não aconteceu só na Idade Média, essa longa noite de mil anos. Isso verificou-se aqui na Europa já depois do século das luzes em plena época da ilustração. Estaline livrou-se dos velhos revolucionários bolcheviques, seus antigos camaradas das lutas contra o czar e das jornadas insurrecionais de 1917, cobrindo-os com as piores infâmias. Antes de os matar, obrigou-os a confessar publicamente traições tão abjetas que jamais lhes tinham passado sequer pela cabeça. Reduziu-os, com inimagináveis requintes de cinismo, à condição histórica de coisas antes de ritualizar os seus assassínios em tribunal.
Béria e Torquemada são os dois símbolos mais paradigmáticos dessa racionalidade de condenação com prévia coisificação dos condenados. Eles são os símbolos mais evidentes da abjeção a que pode chegar um poder sem qualquer controlo. Ninguém ao longo da história foi tão eficaz na destruição do que resta de humano dentro de um condenado. Só depois de totalmente aniquilados como seres humanos, só depois de lhes extorquirem a última gota de dignidade é que os deixavam subir ao cadafalso. Mas então já não eram homens o que matavam. Ninguém foi tão metódico nas estratégias de aniquilamento humano como o foram o estalinismo e o Santo Ofício. E sempre em nome dos mais altos valores. Um invocando os fins de uma revolução libertadora e outro a pureza de uma religião de misericórdia e de amor ao próximo.
Os tiranos e os torturadores devem sentir uma volúpia demoníaca quando ouvem um supliciado a dizer as maiores infâmias sobre si próprio só para lhes dar prazer. Talvez (só) isso lhes permita suportar a sua própria solidão.
in JN - A. Marinho e Pinto