Perante a imensidão da
tragédia humana, como reage o homem ao longo da História? Em regra, de duas
maneiras: ou aceita o seu destino com resignação e depõe o seu sofrimento na
ara de uma qualquer divindade ou então revolta-se. E quando se revolta ele
exprime sempre nesse gesto uma negação. Umas vezes recusa a sua própria
existência e nega a sua própria condição humana. Não aceita o lugar que lhe foi
reservado na vida e no Mundo e revolta-se contra o seu Deus, usando a única
arma que sabe manejar que é a blasfémia. É a revolta existencial que o levará
quase sempre ao suicídio. Outras vezes, porém, o homem insurge-se contra o seu
lugar na sociedade. Acusa não Deus mas outros homens e ergue-se contra o
soberano. Empunhando a espada, ele parte para a aventura revolucionária, que
não raro o conduz a extremos de violência coletiva. É a revolta social que
inevitavelmente o levará ao homicídio. (Nos tempos atuais há ainda um
"tertium genus": a "indignação", ou seja, uma espécie de
revolta domesticada que se esvai nas margens sem quaisquer consequências
pessoais ou históricas).
Ao escolher a morte como
solução, ambos os revoltados (existencial e social) proclamam uma natureza
superior à ordem estabelecida. Insurgindo-se contra a injustiça e a servidão
ambos recusam a condição histórica de dominados. Apenas com uma diferença:
enquanto o revoltado existencial quase sempre morre na solidão do seu drama
pessoal, o revoltado social acaba, em regra, por subir ao cadafalso, pois só aí,
perante a multidão, ele poderá proclamar a condição suprema a que aspira - a de
mártir. Ele não ignora que assim vai adquirir uma força superior à do próprio
poder que o aniquila. Iluminado por uma intuição terrível, ele sabe que o
reinado do imperador termina inexoravelmente com a sua morte, enquanto o do
mártir começa precisamente no momento da sua execução. A coroação de um mártir
é sempre póstuma e o seu reinado pode estender-se por séculos ou milénios. Um
revolucionário mártir é sempre mais temível depois de morto. Quem num gesto
derradeiro de revolta dispõe da própria vida responde de forma clara e
definitiva a todas as angústias que o atormentaram durante a existência.
Por isso é que ao longo dos
tempos os condenados eram, antes de morrer, submetidos aos piores ultrajes e
sofrimentos com vista, precisamente, a reduzi-los à condição infame de objetos.
Todos nos recordamos dos suplícios que eram infligidos aos condenados antes de
serem atirados ainda vivos para as fogueiras da Inquisição. E isso não aconteceu
só na Idade Média, essa longa noite de mil anos. Isso verificou-se aqui na
Europa já depois do século das luzes em plena época da ilustração. Estaline
livrou-se dos velhos revolucionários bolcheviques, seus antigos camaradas das
lutas contra o czar e das jornadas insurrecionais de 1917, cobrindo-os com as
piores infâmias. Antes de os matar, obrigou-os a confessar publicamente
traições tão abjetas que jamais lhes tinham passado sequer pela cabeça.
Reduziu-os, com inimagináveis requintes de cinismo, à condição histórica de
coisas antes de ritualizar os seus assassínios em tribunal.
Béria e Torquemada são os dois
símbolos mais paradigmáticos dessa racionalidade de condenação com prévia
coisificação dos condenados. Eles são os símbolos mais evidentes da abjeção a
que pode chegar um poder sem qualquer controlo. Ninguém ao longo da história
foi tão eficaz na destruição do que resta de humano dentro de um condenado. Só
depois de totalmente aniquilados como seres humanos, só depois de lhes
extorquirem a última gota de dignidade é que os deixavam subir ao cadafalso.
Mas então já não eram homens o que matavam. Ninguém foi tão metódico nas
estratégias de aniquilamento humano como o foram o estalinismo e o Santo
Ofício. E sempre em nome dos mais altos valores. Um invocando os fins de uma
revolução libertadora e outro a pureza de uma religião de misericórdia e de
amor ao próximo.
Os tiranos e os torturadores
devem sentir uma volúpia demoníaca quando ouvem um supliciado a dizer as
maiores infâmias sobre si próprio só para lhes dar prazer. Talvez (só) isso
lhes permita suportar a sua própria solidão.
in JN - A. Marinho e Pinto