Apontamento para apoio (11º ano)

Introdução
Ao defender as nossas ideias queremos argumentos bons. Só assim os argumentos serão persuasivos. E para serem persuasivos, as premissas têm de ser mais plausíveis do que a conclusão. Uma premissa é plausível quando a aceitas com base no conhecimento que tens acerca do que está a ser discutido. Diz-se que isso é o teu estado cognitivo. Mas para teres argumentos bons precisas de argumentos sólidos. Ora, para um argumento ser sólido, terá de ser válido e ter premissas verdadeiras. Chegado aqui, podem ocorrer-te algumas perguntas e uma delas é esta: que verdades temos à nossa disposição quando queremos discutir uma questão com argumentos sólidos? O objectivo desta lição é responder a esta pergunta. Espero que no fim fiques esclarecido acerca do tipo de verdades que são mais úteis quando queremos saber como é o mundo e como funciona e que a partir daí te sintas mais capaz de avaliar criticamente argumentos.
Tipos de verdade
Considera o argumento 1:
João está ou não está a ouvir o Quarteto de Cordas n.º 21 de Mozart.
Não é verdade que o João não está a ouvir o Quarteto de Cordas n.º 21 de Mozart.
Logo, o João está a ouvir o Quarteto de Cordas n.º 21 de Mozart.
O argumento é válido porque é impossível as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa. A forma lógica expressa é válida e é conhecida como «silogismo disjuntivo».
Mas será sólido? Para o saberes terás de ver se as premissas são verdadeiras ou não. Se realmente não for verdade que o João não está a ouvir o Quarteto de Cordas n.º 21 de
Mozart, a segunda premissa é verdadeira. E embora falte avaliar a primeira premissa, nem sequer precisas de consultar a realidade para o fazer. Baste que olhes para a sua estrutura para teres de concluir que a afirmação não é falsa em nenhuma circunstância imaginável. Por isso, trata-se de uma verdade lógica. Há verdades lógicas que não são informativas porque nos dizem coisas banais acerca do mundo, como é o caso de «Está nevoeiro em Londres ou não está nevoeiro em Londres». E há teoremas da matemática que são verdades lógicas muito informativas. Mas mesmo as verdades lógicas simples têm aplicação empírica e um exemplo disso é a informática. Por outro lado, a ciência e o senso comum resultam de informação empírica bruta e de raciocínio; sem lógica teríamos apenas um catálogo de factos directamente observáveis. O que fazer então perante as verdades lógicas? Avaliar com cuidado o seu grau de informação e de aplicação empírica.
Considera o argumento 2:
Se João é casado, então não é solteiro.
João não é casado.
Logo, é solteiro.
O argumento é válido porque, tal como o anterior, é impossível as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa. Mas há uma diferença: a validade não se deve à forma lógica do argumento, que poderás verificar que é inválida através de um inspector de circunstâncias.
A que se deve então? Ao significado das palavras «solteiro» e «casado». Diz-se por isso que o argumento é semanticamente válido e não formalmente válido. E será que o argumento é sólido? Se realmente o João não é casado, a segunda premissa é verdadeira.
E quanto à primeira premissa, será que precisamos de consultar a realidade para saber se ela é verdadeira ou falsa? Mais uma vez não, e mais uma vez por uma razão diferente: a condicional em questão não pode ser falsa em nenhuma circunstância devido ao significado dos termos envolvidos e não apenas à sua estrutura lógica. Por isso se diz que é uma verdade analítica. Mas isto não implica que a verdade analítica em questão não diga nada acerca do mundo, apesar de dizer acerca do mundo uma banalidade e de te bastar saber o significado das palavras para afirmares verdades analíticas. Há verdades analíticas muito simples que não parecem informativas, mas há teoremas que são verdades analíticas informativas. E há também argumentos que estabelecem previsões sobre o funcionamento de certos aspectos do mundo e que têm verdades analíticas como premissas.
O que fazer perante verdades analíticas? Mais uma vez a ideia é teres muito cuidado a avaliar o seu grau de informação e de aplicação empírica.
Esta é a ideia básica que terás de dominar acerca das verdades analíticas, mas não penses que é pacífica. Há filósofos que defendem uma ideia diferente. Para eles as verdades lógicas dependem exclusivamente da sua estrutura formal e as verdades analíticas dependem exclusivamente do significado dos termos envolvidos. Nem umas nem outras diriam o que quer que fosse acerca do mundo e não seriam informativas. Logo, não dependeriam do mundo. Mas esta ideia não respeita as nossas intuições mais básicas, porque plausivelmente achamos que, apesar de uma afirmação como «Está nevoeiro ou não está nevoeiro em Londres» exprimir uma verdade banal, ela depende do facto de um ou outro estado do mundo ter de ocorrer. Seria bem diferente se disséssemos «As estrelas dormem ou não dormem nas noites de Outono». Neste caso estamos perante uma frase com a mesma estrutura lógica da anterior que não é uma verdade lógica; trata-se simplesmente de um absurdo que, ao contrário das verdades lógicas, nada diz sobre o mundo. O mesmo acontece com a verdade analítica «Se João é casado, então não é solteiro»; a nossa intuição diz-nos que o estado do mundo em que João não é solteiro terá de ocorrer se João for casado. Estamos mais uma vez perante uma banalidade não informativa que, apesar disso, não deixa de descrever um estado do mundo.
Considera o argumento 3:
Se a velocidade da luz não é a velocidade limite, então há objectos que viajam mais depressa que a luz.
Não é verdade que há objectos que viajam mais depressa que a luz.
Logo, a velocidade da luz é a velocidade limite.
Mais uma vez o argumento é válido pela razão que já conheces. A forma lógica válida que ele exprime tem o nome de modus tollens. O argumento também é sólido. Tanto quanto se sabe hoje na ciência que se ocupa do estudo da luz — a física — as duas premissas são verdadeiras. Mas é evidente que não estamos perante verdades lógicas ou analíticas. A segunda premissa, por exemplo, não deve a sua verdade à estrutura lógica ou ao significado dos termos. A segunda premissa é implicada pelas leis da física actual e por isso se diz que é uma verdade física. Mas será que as leis da física poderiam ser diferentes do que são e que a velocidade da luz poderia não ser a velocidade limite? Se respondermos que sim e se acharmos o mesmo em relação a todas as leis da natureza, as verdades físicas serão apenas contingentes e será possível que os objectos viagem mais depressa do que a luz, assim como será possível que a água não seja H2O. Se respondermos que não e se acharmos o mesmo em relação a todas as leis da natureza, as verdades físicas serão necessárias e nesse caso é impossível que os objectos viagem a uma velocidade superior à da luz.
Cada uma das respostas vê de uma maneira diferente a investigação que a ciência faz do mundo. A primeira resposta implica que não há verdades necessárias acerca da natureza.
Todas as verdades empíricas são contingentes, o que quer dizer que ocorrem no estado actual do mundo e mas não noutros estados do mundo. Ao adquirir informação acerca do mundo, o que a ciência faz é simplesmente diminuir o conjunto de possibilidades que são compatíveis com a situação epistémica actual. Mas não exclui como impossíveis certos estados do mundo. A segunda resposta, essa sim, já exclui. Porquê?
Porque alargamos o que é possível conhecer não só ao que é fisicamente possível mas também ao que é fisicamente necessário. E nesse caso há estados do mundo que não podem ocorrer.
Neste momento talvez te sintas inclinado a aceitar como mais intuitiva a primeira resposta e vejas a ciência como um conjunto de verdades empíricas, possíveis entre outras igualmente possíveis, mas não necessárias. Afinal de contas, se alguns físicos actuais consideram seriamente a hipótese de a velocidade da luz não ser constante, por que razão não é possível conceber que um dia seja descoberto nos confins do universo um pedaço de matéria que viaja mais depressa que a luz? Mas o facto de ser possível conceber um estado do mundo assim talvez não queira dizer que ele pode realmente existir.
De qualquer modo, sejam elas necessárias ou contingentes, queremos verdades físicas nos argumentos sólidos que usamos quando tentamos conhecer o mundo.
Tendo como pano de fundo o que foi dito a propósito das verdades físicas, considera agora o argumento 4:
Se o líquido que está dentro desta garrafa é água, então tem duas partes de hidrogénio e uma de oxigénio.
O líquido que está dentro desta garrafa é água.
Logo, tem duas partes de hidrogénio e uma de oxigénio.
O argumento é válido. A forma lógica que capta a sua validade é o modus ponens. E é sólido: se é verdade que o líquido que está dentro da garrafa é água, a segunda premissa é verdadeira e nesse caso a primeira premissa não pode ser falsa. Porque se é verdade que o líquido que está dentro da garrafa é água, não pode ser falso que tem duas partes de hidrogénio e uma de oxigénio; logo, a condicional é verdadeira. Ora, esta condicional é uma verdade metafisicamente necessária. Se analisares uma verdade deste tipo, intuitivamente dirás que ela é necessária, dado que não podem ocorrer estados do mundo em que a água não seja H2O. Para exprimir verdades metafisicamente necessárias, alguns filósofos usam o idioma dos mundos possíveis e dizem que «a água é H2O» é verdadeira em todos os mundos possíveis.
A verdade física do argumento 3 e a verdade física do argumento 4 são ambas verdades empíricas. Mas há uma razão para as distinguir. A tua intuição plausivelmente considera que a verdade física do argumento 3 é metafisicamente contingente e que a verdade física do argumento 4 é metafisicamente necessária. Pressupões que a frase «a água é H2O» exprime uma necessidade metafísica porque atribui ao referente do sujeito – a água – um predicado que é uma propriedade essencial – é H2O. Daí não ser plausível pensar que a água possa não ser H2O. Mas já não partes do mesmo pressuposto em relação à verdade física do argumento 3.
Neste momento talvez compreendas com mais clareza a investigação que a ciência faz do mundo. Espero que tenhas razões para isso. Sabes agora que nuns casos a ciência descobre verdades contingentes e noutros verdades necessárias. Estas últimas são fortíssimas.
E o mais espantoso é que para descobrir o que pode e não pode de todo ser, os homens tenham por vezes de descobrir primeiro o que é. Ou talvez isto não tenha nada de espantoso.
Conclusão
Ao longo desta lição viste que há vários tipos de verdades e que umas são mais interessantes do que outras quando queremos ter argumentos sólidos acerca do funcionamento do mundo. Se estamos a investigar a natureza e temos à nossa disposição verdades metafisicamente necessárias com um grau de plausibilidade muito forte, podemos ter, para além de argumentos sólidos, argumentos bons. Neste caso, as possibilidades de refutação dos argumentos são menores porque deixa de ser possível imaginar circunstâncias em que as premissas são duvidosas ou em que a conclusão é falsa. Resta-nos a possibilidade de encontrar um contra-exemplo claramente inválido
 

Faustino Vaz in www.cef-spf.org