
(…)
Eis uma metodologia diferente de estudo da filosofia. Começa-se com os
problemas, e não com as opiniões das autoridades. O ponto de partida é um
problema ou família de problemas. Os melhores problemas ou famílias de
problemas por onde começar são os mais gerais e centrais da filosofia. Em vez
de começar por estudar o problema de saber se há ou não uma linguagem privada,
começar por estudar o problema geral do significado: o que é isso de uma
sequência de sons ou marcas num papel terem significado? Eis outro exemplo: em
vez de começar por estudar a diferença entre o utilitarismo das regras e dos
actos, começar por estudar o que será afinal o bem último, se é que há tal
coisa, e que melhores candidatos há.
Isto significa que se dá muita importância a bons livros introdutórios, que
apresentem didacticamente estes problemas mais gerais, assim como as principais
tentativas de resposta. Entre as tarefas centrais nessa fase do estudo
contam-se as seguintes:
Compreender com muito rigor o problema. Isto implica distinguir formulações
erradas do problema, e saber explicar por que razão é um problema genuíno e não
uma confusão qualquer. É preciso compreender a força intuitiva do problema. Não
pode tratar-se de um mero artificialismo escolar ou académico.
Compreender as alternativas conceptuais de resposta ao problema que podemos
já vislumbrar. Isto é muito importante porque as respostas reais que depois
iremos ler nos filósofos são explorações dessas alternativas que com um pouco
de imaginação e discussão podemos desde logo ver que existem. Os filósofos
limitam-se a explorar em pormenor uma delas. (E às vezes tentam combinar
alternativas teóricas que não podem ser combinadas.)
Compreender logo as dificuldades óbvias que cada alternativa teórica
enfrenta. Esta compreensão será crucial quando se analisar cuidadosamente as
respostas que efectivamente os filósofos dão a esses problemas.
Saber, historicamente, que alternativas foram realmente defendidas por
quem. Isto é muito importante porque sem contrastar teorias rivais (as
respostas dos filósofos) não se consegue avaliá-las criticamente de modo
adequado, e ficamos então presos à doxografia autoritária, que consiste em
parafrasear filósofos.
Esta maneira de proceder significa que se lê os textos dos filósofos
sabendo contextualizá-los conceptualmente (e não apenas historicamente,
o que na maior parte dos casos não é assim tão relevante). Ou seja, sabemos a
que problemas ou família de problemas o autor está a responder, e portanto não
o lemos como um produtor de ficções algo aleatórias, mas como um produtor de
respostas que queremos ver se são plausíveis; e só podemos ver se são
plausíveis se sentirmos na pele a realidade dos problemas que estão em causa.
Além disso, ao ler um dado filósofo, só podemos avaliar as suas ideias se
tivermos conhecimento das alternativas teóricas — sem alternativas teóricas
toda a teoria é boa (repare-se: se não tivéssemos alternativa à teoria de
Copérnico que raio de razão teríamos para não aceitar que a Terra está imóvel
no centro do universo?)
Outra vantagem desta abordagem é que eliminamos da nossa leitura dos textos
dos filósofos as imensas irrelevâncias que muitas vezes têm, e concentramo-nos
apenas no que nos interessa. É uma leitura que resolutamente não se interessa
pela psicologia do filósofo, pelo seu sistema, a maneira como concebe o mundo e
se gosta de café ou prefere chá. É uma abordagem terrorista, puramente teórica,
completamente instrumentalista: o texto do filósofo é um mero meio para
a nossa investigação, e não um fim em si. Há um desprezo profundo pela
psicologia do filósofo, pelas suas intenções laterais, pela sua personalidade,
etc. Tudo o que queremos saber é se a alternativa teórica que está a explorar
funciona ou não e porquê, que dificuldades enfrenta, que vantagens e desvantagens
relativas tem perante as outras alternativas. É uma leitura completamente
desinteressante para quem vê a filosofia como uma subdisciplina da literatura
ou da história (estas abordagens têm, é claro, todo o direito a existir). E
nunca se presume que o filósofo tem um acesso privilegiado à verdade; lemos os
seus textos como produtos de um ser humano como nós que está a tentar resolver
um problema ou família de problemas que também nos preocupam: o filósofo é um
interlocutor que podemos refutar e interrogar, e não uma autoridade que fala do
púlpito e que só nos resta compreender e sistematizar.
(…)
A abordagem aqui proposta do estudo da filosofia opõe-se à seguinte ideia
comum: para podermos discutir as ideias de um filósofo, como Kant ou outro,
primeiro temos de dominar muito bem, muito bem, o que ele realmente defende, de
preferência lendo-o na língua original; só assim garantimos que não estamos a
compreender mal o filósofo.
Considero que esta abordagem não funciona por dois motivos.
Em primeiro lugar, porque pressupõe falsamente que é possível compreender
bem os filósofos sem os submeter ao género de leitura activa aqui apresentada.
Na verdade, a melhor maneira de compreender os filósofos é levantar objecções,
contra-exemplos e outras dificuldades, pois isso permite-nos ver em que casos
compreendemos mal as suas ideias, em que casos as suas teorias têm recursos
para responder a objecções ou contra-exemplos aparentes.
Em segundo lugar, porque pressupõe falsamente que a leitura activa é incompatível
com o rigor histórico e interpretativo. Pelo contrário, a melhor motivação para
o rigor histórico e interpretativo é querermos saber o que realmente pensava o
filósofo, e não o que parece à primeira vista que ele pensava, pois o que
queremos saber é se o que ele pensava ajuda a resolver o problema que queremos
resolver. Por isso, queremos garantir que temos a melhor representação possível
das ideias do filósofo; queremos garantir que fazemos a leitura mais rigorosa e
mais favorável possível ao filósofo. O objectivo não é a tolice de senso comum
de ficar famoso refutando Kant, pois o que não falta no mundo são refutações de
filósofos e só é possível pensar que se fica famoso com mais uma quando se
desconhece a bibliografia filosófica relevante; o objectivo é saber que
recursos têm as teorias do filósofo para responder às piores dificuldades, e se
são comparativamente mais plausíveis do que as suas alternativas.
Isto significa que, nesta abordagem, os textos dos filósofos não são usados
didacticamente, como se fossem textos introdutórios. Os textos dos filósofos
são usados como textos teóricos por direito próprio, que só podem ser lidos
activamente com preparação adequada para tal. (…) A vantagem desta abordagem é permitir a
formação de filósofos propriamente ditos — e de historiadores da filosofia de
altíssimo perfil, pois sem saber filosofia não é possível fazer boa história da
filosofia e sem lutar directamente com os problemas filosóficos e sem conhecer
as alternativas teóricas não é possível saber filosofia.
Na abordagem aqui proposta o aluno não esgota toda a sua energia cognitiva
tentando apenas compreender mais ou menos o pensamento dos filósofos; pois o
aluno apreendeu de maneira didáctica e acessível os instrumentos e
conhecimentos necessários para compreender as ideias e argumentos dos
filósofos. A sua energia cognitiva é reservada para o trabalho crítico de saber
se tais ideias são melhores do que as suas alternativas e para o trabalho
criativo de propor ideias filosóficas próprias.
(…)
A esperança de que basta ler directamente os clássicos da filosofia para se
aprender a filosofar parece-me uma ilusão, na maior parte dos casos. Parece-me
que na maior parte dos casos se aprende apenas a parafrasear. O mesmo ocorre se
uma pessoa sem preparação tentar aprender biologia lendo textos sofisticados de
biologia: conseguirá parafrasear esses textos, mas será relativamente baixa a
probabilidade de aprender a fazer biologia."
Desidério
Murcho