
Os próprios soldados caídos na guerra eram logo honrados com solenes
discursos fúnebres. Mas foi com o advento da democracia que esse interesse pela
eloquência e oratória cresceu de uma maneira explosiva. Compreende-se porquê: o
povo - onde não se incluíam, nem as mulheres, nem os escravos, nem os
forasteiros - passou a poder reunir-se em assembleia geral para tratar e
decidir de todo o tipo de questões. Assembleia geral que era ao mesmo tempo o
supremo órgão legislativo, executivo e judicial. Nela se concentravam os mais
altos poderes. Podia declarar a guerra ou a paz, alterar as leis, outorgar a
alguém as máximas honras mas também mandá-lo para o exílio ou condená-lo à
morte. Tratava-se de reuniões públicas e livres, pois todos os cidadãos podiam
assistir, participar e votar. Logicamente, os que melhor falavam eram também os
mais influentes. Logo, quem aspirasse a ter alguma influência nessas
assembleias, forçosamente teria de possuir assinaláveis dotes oratórios. Além
do mais, os conflitos entre cidadãos dirimiam-se perante tribunais constituídos
por jurados eleitos por sorteio. Aquele que com suas palavras persuasivas
lograsse prender a atenção dos jurados e convencê-los da sua posição, sairia
vencedor do pleito.
A oratória passou assim a ser fundamental, já não apenas
para aqueles que aspiravam à política - que era a ambição ou carreira mais
normal para os cidadãos livres daquele tempo - mas também para os cidadãos em
geral que, dedicados aos seus negócios e ocupações agrícolas ou artesanais, com
alguma frequência se viam envoltos em acusações e julgamentos no âmbito de
infracções ou delitos, contratos, impostos, etc. Nem toda a gente porém era capaz de falar em público com brilho e eficácia.
Os menos hábeis na oratória tinham de pedir a ajuda dos mais preparados. Daí ao
florescimento de uma classe profissional de especialistas na arte de bem falar
e escrever, foi um passo. Esses especialistas, ora transmitiam ensinamentos de
retórica, ora representavam pessoalmente os seus clientes nos pleitos ou
cediam-lhes discursos já feitos que aqueles pronunciariam como se fossem
escritos por eles próprios. Com o passar do tempo a experiência oratória foi
sendo reunida em máximas e preceitos tendentes à obtenção do êxito no tribunal
ou na assembleia. A oratória tornava-se desse modo uma técnica e por meados do
séc. V a. C. surgiam na Sicília os primeiros tratados de retórica, atribuídos a
Kórax e Tísias, embora confinados praticamente à oratória forense e dando
especial relevo aos truques a que o advogado poderia recorrer para vencer em
juízo.
O verdadeiro fundador da técnica retórica, porém, foi um outro
siciliano, Górgias Leontinos que surgiu em Atenas, no ano de 427 a. C., como
embaixador da sua cidade natal e que desde logo causou a maior sensação, devido
aos brilhantes e floreados discursos com que se dirigia aos Atenienses, a
solicitar a sua ajuda. Muitos deles, fascinados pela sua oratória, tornaram-se
seus discípulos,fazendo de Górgias o primeiro professor de retórica de que há
conhecimento. Para Górgias, a oratória deveria excitar o auditório até o deixar
completamente persuadido. Não lhe interessava uma eventual verdade objectiva,
mas tão somente o convencimento dos ouvintes. Para o efeito, o orador deveria
ter em conta a oportunidade do lugar e do momento, para além de saber
adaptar-se ao carácter dos que o escutassem. Mas sobretudo, teria de usar uma
linguagem brilhante e poética, cheia de efeitos, figuras e ritmos. Ele foi,
pode dizer-se, o introdutor de uma oratória de exibição ou de aparato, sem
obediência a qualquer finalidade política ou forense e orientada
fundamentalmente para fazer realçar o próprio orador. Neste aspecto, em nada se
afastava de muitos outros sofistas do seu tempo. Aristóteles estudou os tratados de retórica deixados por Górgias e seus
seguidores, chegando mesmo a resumi-los numa só obra em que procedeu à
compilação das técnicas retóricas. Considerou, porém, tais tratados pouco
satisfatórios, por não irem além do recurso aos truques legais e às maneiras
mais absurdas de suscitar a compaixão dos jurados. Faltava uma apresentação
séria e mais abrangente das regras e dos métodos da retórica, especialmente, os
mais técnicos e eficazes, aqueles que se baseiam na argumentação.
Quando
Aristóteles chegou a Atenas, Isócrates era o mais famoso e influente Mestre de
retórica e possuía uma escola mais bem sucedida que a Academia de Platão, com a
qual de resto rivalizava, na formação dos futuros homens políticos da cidade.
Logo por altura da fundação da sua escola, Isócrates escreveu uma obra com o
muito elucidativo título de Contra os sofistas, na qual acusava estes últimos
de perderem o seu tempo e fazerem perder o dos demais com subtilezas
intelectuais sem qualquer relevância para a vida, para a política ou para a
acção. Igualmente condenava os retóricos formalistas por inculcarem nosseus
alunos a falsa ideia de que a aplicação mecânica de um receituário de regras ou
truques pode levar ao êxito. Demarcando-se do que até aí tinha sido a
orientação dominante dos grandes mestres da retórica, Isócrates proclama a
necessidade de uma formação integral, que partindo de um carácter adequado,
inclua o estudo tanto da temática política como da técnica retórica em toda a
sua dimensão. Só assim se poderia formar cidadãos virtuosos e preparados para o
êxito político e social. Assinale-se que era a esta formação integral, onde a
retórica assumia um papel de relevo, a que Isócrates chamava Filosofia. Os
demais filósofos, incluindo Platão, não passariam de sofistas pouco sérios. Contra essa concepção se pronunciou Platão por achar que o ensino de
Isócrates, para além de frívolo e superficial, era dirigido unicamente ao êxito
social, ficando à margem de todo o questionamento filosófico ou científico
sobre a natureza da realidade. Estava em causa a educação superior ateniense e,
segundo Platão, a hegemonia da retórica, que visa a persuasão e não a verdade,
era um perigo que urgia atacar decididamente. No seu diálogo “Górgias”,podemos
ver como ele confronta a retórica e a filosofia, defendendo claramente uma
espécie de tecnocracia moral, em que os verdadeiros especialistas (os
filósofos) conduzam os cidadãos àquilo que é o seu interesse, isto é, a serem
cada vez melhores. Condena a democracia onde os políticos oradores bajulam o
povo e seguem servilmente os seus caprichos, o que só pode tornar os cidadãos
cada vez piores. E esgrime os seus contundentes argumentos contra a retórica,
negando-lhe o carácter de uma verdadeira técnica, por não se basear em
conhecimento algum. Para ele, a retórica não passa de uma mera rotina concebida
para agradar ou adular. É apenas um artifício de persuasão. Não da persuasão do
bom ou do verdadeiro, mas sim da persuasão de qualquer coisa. Lembra que é
graças à retórica que o injusto se livra do castigo, quando segundo ele,
valeria mais ser castigado, pois a injustiça é o maior mal da alma.
Platão
conclui que a retórica não tem mesmo qualquer utilidade a não ser que se
recorra a ela justamente para o contrário: para que o faltoso ou delinquente
seja o primeiro acusador de si mesmo e de seus familiares, servindo-se da
retórica para esse fim, para tornar patentes os seus delitos e se livrar desse
modo do maior dos males, a injustiça. Isócrates, por certo, não comungava de
tão exaltado moralismo, pois a sua retórica estava orientada basicamente para a
defesa de qualquer postura, para ganhar os pleitos, para persuadir a
assembleia. Foi, porém, o mais moralista e comedido de todos os retóricos, em
grande parte, devido às suas reais preocupações políticas, mas também por estar
convencido que o virtuoso acaba sempre por ter mais êxito do que o depravado.
Por isso se insurgia, tal como Platão, contra os sofistas mais cínicos e
amorais. Compreende-se assim que Platão, com o decorrer dos tempos, tenha
temperado a veemência das suas iniciais críticas à retórica, chegando mesmo a
elogiar Isócrates, embora sem reconhecer à oratória outro mérito que não fosse
o meramente literário. Na sua obra “Fedro” viria inclusivamente a admitir a
possibilidade de uma retórica distinta, verdadeira e boa, que se confundiria
quase com a filosofia platónica. Idêntica mutação de pensamento parece ser de
assinalar a Aristóteles, que depois de ter inicialmente enfrentado Isócrates
para defender a supremacia das teses platónicas - cujo êxito lhe valeu o
convite para dirigir o primeiro curso de retórica na Academia - acabou por ir
abandonando pouco a pouco as posições exacerbadamente moralistas destas
últimas, em favor da incorporação de cada vez mais elementos da técnica
oratória. Com isso, pode dizer-se que a sua concepção final da retórica, muito
precisa e realista, se situa, pelo menos, tão próximo de Isócrates como de
Platão. Aristóteles insurge-se contra os retóricos que o precederam, acusando-os de
se terem contentado com o compilar de algumas receitas e um sem número de
subterfúgios ou evasivas aplicáveis à oratória, que visam apenas a compaixão
dos juízes. E isto, quando há outros tipos de oratória para além da forense,
tornando-se necessário proceder à sua distinção. Além do mais, os especialistas
da oratória tinham até ali passado ao lado do recurso técnico mais importante a
que pode deitar mão o orador: a argumentação, em especial, o entimema. São
essas lacunas que Aristóteles se propõe suprir. Haveria que estudar as razões
porque os oradores que pronunciam os seus discursos, umas vezes têm êxito e
outras não. Sistematizar e explicitar essas razões é a grande tarefa da técnica, no
caso, da técnica retórica. Ao assumir essa posição, Aristóteles vai afastar-se
de toda a concepção negativista da retórica, reconhecendo-lhe finalmente a dignidade
de fundamento e de uso que até aí tanto fora questionada, especialmente por
Platão e seus seguidores. Agora a técnica retórica é considerada útil para
todos os cidadãos e até para os filósofos, pois perante os auditórios populares
que formam as assembleias e os tribunais, de nada servem as demonstrações
puramente científicas, sendo imprescindível recorrer à retórica, para obter o
entendimento e convencer os restantes co-participantes. De contrário, corre-se
o risco de ser vencido e ver a verdade e a justiça escamoteadas.
Definitivamente, o saber defender-se com a palavra, passou a ser uma parte
essencial da educação e cultura geral grega. E Aristóteles explica porquê: “se
é vergonhoso que alguém não possa servir-se de seu próprio corpo [para se defender],
seria absurdo que não o fosse no que respeita à razão, que é mais própria do
homem do que o uso do corpo”. É certo que uma das maiores acusações que Platão
fizera à retórica tinha sido a de que esta poderia trazer graves consequências
quando alguém dela se servisse para fazer o mal, mas Aristóteles riposta
categoricamente, lembrando que “se é certo que aquele que usa injustamente
desta capacidade para expor razões poderia causar graves danos, não é menos
certo que isso ocorre com todos os bens, à excepção da virtude, sobretudo com
os mais úteis, como o vigor, a saúde, a riqueza ou a capacidade militar, pois
com eles tanto pode obter-se os maiores benefícios, se usados com justiça, como
os maiores custos, se injustamente utilizados”.
Américo
de Sousa in bocc.ubi.pt