Desde sempre os gregos foram inveterados amantes da palavra, apreciando a
eloquência natural mais do que qualquer outro povo antigo. A comprová-lo estão
os brilhantes discursos que enchem as páginas da Ilíada e as fervorosas
palavras que os comandantes militares dirigiam às suas tropas antes de entrar
em combate.
Os próprios soldados caídos na guerra eram logo honrados com solenes
discursos fúnebres. Mas foi com o advento da democracia que esse interesse pela
eloquência e oratória cresceu de uma maneira explosiva. Compreende-se porquê: o
povo - onde não se incluíam, nem as mulheres, nem os escravos, nem os
forasteiros - passou a poder reunir-se em assembleia geral para tratar e
decidir de todo o tipo de questões. Assembleia geral que era ao mesmo tempo o
supremo órgão legislativo, executivo e judicial. Nela se concentravam os mais
altos poderes. Podia declarar a guerra ou a paz, alterar as leis, outorgar a
alguém as máximas honras mas também mandá-lo para o exílio ou condená-lo à
morte. Tratava-se de reuniões públicas e livres, pois todos os cidadãos podiam
assistir, participar e votar. Logicamente, os que melhor falavam eram também os
mais influentes. Logo, quem aspirasse a ter alguma influência nessas
assembleias, forçosamente teria de possuir assinaláveis dotes oratórios. Além
do mais, os conflitos entre cidadãos dirimiam-se perante tribunais constituídos
por jurados eleitos por sorteio. Aquele que com suas palavras persuasivas
lograsse prender a atenção dos jurados e convencê-los da sua posição, sairia
vencedor do pleito.
A oratória passou assim a ser fundamental, já não apenas
para aqueles que aspiravam à política - que era a ambição ou carreira mais
normal para os cidadãos livres daquele tempo - mas também para os cidadãos em
geral que, dedicados aos seus negócios e ocupações agrícolas ou artesanais, com
alguma frequência se viam envoltos em acusações e julgamentos no âmbito de
infracções ou delitos, contratos, impostos, etc. Nem toda a gente porém era capaz de falar em público com brilho e eficácia.
Os menos hábeis na oratória tinham de pedir a ajuda dos mais preparados. Daí ao
florescimento de uma classe profissional de especialistas na arte de bem falar
e escrever, foi um passo. Esses especialistas, ora transmitiam ensinamentos de
retórica, ora representavam pessoalmente os seus clientes nos pleitos ou
cediam-lhes discursos já feitos que aqueles pronunciariam como se fossem
escritos por eles próprios. Com o passar do tempo a experiência oratória foi
sendo reunida em máximas e preceitos tendentes à obtenção do êxito no tribunal
ou na assembleia. A oratória tornava-se desse modo uma técnica e por meados do
séc. V a. C. surgiam na Sicília os primeiros tratados de retórica, atribuídos a
Kórax e Tísias, embora confinados praticamente à oratória forense e dando
especial relevo aos truques a que o advogado poderia recorrer para vencer em
juízo.
O verdadeiro fundador da técnica retórica, porém, foi um outro
siciliano, Górgias Leontinos que surgiu em Atenas, no ano de 427 a. C., como
embaixador da sua cidade natal e que desde logo causou a maior sensação, devido
aos brilhantes e floreados discursos com que se dirigia aos Atenienses, a
solicitar a sua ajuda. Muitos deles, fascinados pela sua oratória, tornaram-se
seus discípulos,fazendo de Górgias o primeiro professor de retórica de que há
conhecimento. Para Górgias, a oratória deveria excitar o auditório até o deixar
completamente persuadido. Não lhe interessava uma eventual verdade objectiva,
mas tão somente o convencimento dos ouvintes. Para o efeito, o orador deveria
ter em conta a oportunidade do lugar e do momento, para além de saber
adaptar-se ao carácter dos que o escutassem. Mas sobretudo, teria de usar uma
linguagem brilhante e poética, cheia de efeitos, figuras e ritmos. Ele foi,
pode dizer-se, o introdutor de uma oratória de exibição ou de aparato, sem
obediência a qualquer finalidade política ou forense e orientada
fundamentalmente para fazer realçar o próprio orador. Neste aspecto, em nada se
afastava de muitos outros sofistas do seu tempo. Aristóteles estudou os tratados de retórica deixados por Górgias e seus
seguidores, chegando mesmo a resumi-los numa só obra em que procedeu à
compilação das técnicas retóricas. Considerou, porém, tais tratados pouco
satisfatórios, por não irem além do recurso aos truques legais e às maneiras
mais absurdas de suscitar a compaixão dos jurados. Faltava uma apresentação
séria e mais abrangente das regras e dos métodos da retórica, especialmente, os
mais técnicos e eficazes, aqueles que se baseiam na argumentação.
Quando
Aristóteles chegou a Atenas, Isócrates era o mais famoso e influente Mestre de
retórica e possuía uma escola mais bem sucedida que a Academia de Platão, com a
qual de resto rivalizava, na formação dos futuros homens políticos da cidade.
Logo por altura da fundação da sua escola, Isócrates escreveu uma obra com o
muito elucidativo título de Contra os sofistas, na qual acusava estes últimos
de perderem o seu tempo e fazerem perder o dos demais com subtilezas
intelectuais sem qualquer relevância para a vida, para a política ou para a
acção. Igualmente condenava os retóricos formalistas por inculcarem nosseus
alunos a falsa ideia de que a aplicação mecânica de um receituário de regras ou
truques pode levar ao êxito. Demarcando-se do que até aí tinha sido a
orientação dominante dos grandes mestres da retórica, Isócrates proclama a
necessidade de uma formação integral, que partindo de um carácter adequado,
inclua o estudo tanto da temática política como da técnica retórica em toda a
sua dimensão. Só assim se poderia formar cidadãos virtuosos e preparados para o
êxito político e social. Assinale-se que era a esta formação integral, onde a
retórica assumia um papel de relevo, a que Isócrates chamava Filosofia. Os
demais filósofos, incluindo Platão, não passariam de sofistas pouco sérios. Contra essa concepção se pronunciou Platão por achar que o ensino de
Isócrates, para além de frívolo e superficial, era dirigido unicamente ao êxito
social, ficando à margem de todo o questionamento filosófico ou científico
sobre a natureza da realidade. Estava em causa a educação superior ateniense e,
segundo Platão, a hegemonia da retórica, que visa a persuasão e não a verdade,
era um perigo que urgia atacar decididamente. No seu diálogo “Górgias”,podemos
ver como ele confronta a retórica e a filosofia, defendendo claramente uma
espécie de tecnocracia moral, em que os verdadeiros especialistas (os
filósofos) conduzam os cidadãos àquilo que é o seu interesse, isto é, a serem
cada vez melhores. Condena a democracia onde os políticos oradores bajulam o
povo e seguem servilmente os seus caprichos, o que só pode tornar os cidadãos
cada vez piores. E esgrime os seus contundentes argumentos contra a retórica,
negando-lhe o carácter de uma verdadeira técnica, por não se basear em
conhecimento algum. Para ele, a retórica não passa de uma mera rotina concebida
para agradar ou adular. É apenas um artifício de persuasão. Não da persuasão do
bom ou do verdadeiro, mas sim da persuasão de qualquer coisa. Lembra que é
graças à retórica que o injusto se livra do castigo, quando segundo ele,
valeria mais ser castigado, pois a injustiça é o maior mal da alma.
Platão
conclui que a retórica não tem mesmo qualquer utilidade a não ser que se
recorra a ela justamente para o contrário: para que o faltoso ou delinquente
seja o primeiro acusador de si mesmo e de seus familiares, servindo-se da
retórica para esse fim, para tornar patentes os seus delitos e se livrar desse
modo do maior dos males, a injustiça. Isócrates, por certo, não comungava de
tão exaltado moralismo, pois a sua retórica estava orientada basicamente para a
defesa de qualquer postura, para ganhar os pleitos, para persuadir a
assembleia. Foi, porém, o mais moralista e comedido de todos os retóricos, em
grande parte, devido às suas reais preocupações políticas, mas também por estar
convencido que o virtuoso acaba sempre por ter mais êxito do que o depravado.
Por isso se insurgia, tal como Platão, contra os sofistas mais cínicos e
amorais. Compreende-se assim que Platão, com o decorrer dos tempos, tenha
temperado a veemência das suas iniciais críticas à retórica, chegando mesmo a
elogiar Isócrates, embora sem reconhecer à oratória outro mérito que não fosse
o meramente literário. Na sua obra “Fedro” viria inclusivamente a admitir a
possibilidade de uma retórica distinta, verdadeira e boa, que se confundiria
quase com a filosofia platónica. Idêntica mutação de pensamento parece ser de
assinalar a Aristóteles, que depois de ter inicialmente enfrentado Isócrates
para defender a supremacia das teses platónicas - cujo êxito lhe valeu o
convite para dirigir o primeiro curso de retórica na Academia - acabou por ir
abandonando pouco a pouco as posições exacerbadamente moralistas destas
últimas, em favor da incorporação de cada vez mais elementos da técnica
oratória. Com isso, pode dizer-se que a sua concepção final da retórica, muito
precisa e realista, se situa, pelo menos, tão próximo de Isócrates como de
Platão. Aristóteles insurge-se contra os retóricos que o precederam, acusando-os de
se terem contentado com o compilar de algumas receitas e um sem número de
subterfúgios ou evasivas aplicáveis à oratória, que visam apenas a compaixão
dos juízes. E isto, quando há outros tipos de oratória para além da forense,
tornando-se necessário proceder à sua distinção. Além do mais, os especialistas
da oratória tinham até ali passado ao lado do recurso técnico mais importante a
que pode deitar mão o orador: a argumentação, em especial, o entimema. São
essas lacunas que Aristóteles se propõe suprir. Haveria que estudar as razões
porque os oradores que pronunciam os seus discursos, umas vezes têm êxito e
outras não. Sistematizar e explicitar essas razões é a grande tarefa da técnica, no
caso, da técnica retórica. Ao assumir essa posição, Aristóteles vai afastar-se
de toda a concepção negativista da retórica, reconhecendo-lhe finalmente a dignidade
de fundamento e de uso que até aí tanto fora questionada, especialmente por
Platão e seus seguidores. Agora a técnica retórica é considerada útil para
todos os cidadãos e até para os filósofos, pois perante os auditórios populares
que formam as assembleias e os tribunais, de nada servem as demonstrações
puramente científicas, sendo imprescindível recorrer à retórica, para obter o
entendimento e convencer os restantes co-participantes. De contrário, corre-se
o risco de ser vencido e ver a verdade e a justiça escamoteadas.
Definitivamente, o saber defender-se com a palavra, passou a ser uma parte
essencial da educação e cultura geral grega. E Aristóteles explica porquê: “se
é vergonhoso que alguém não possa servir-se de seu próprio corpo [para se defender],
seria absurdo que não o fosse no que respeita à razão, que é mais própria do
homem do que o uso do corpo”. É certo que uma das maiores acusações que Platão
fizera à retórica tinha sido a de que esta poderia trazer graves consequências
quando alguém dela se servisse para fazer o mal, mas Aristóteles riposta
categoricamente, lembrando que “se é certo que aquele que usa injustamente
desta capacidade para expor razões poderia causar graves danos, não é menos
certo que isso ocorre com todos os bens, à excepção da virtude, sobretudo com
os mais úteis, como o vigor, a saúde, a riqueza ou a capacidade militar, pois
com eles tanto pode obter-se os maiores benefícios, se usados com justiça, como
os maiores custos, se injustamente utilizados”.
Américo
de Sousa in bocc.ubi.pt