
E esta crise, cada vez mais vivida como a atmosfera incontornável dos nossos
dias, torna simultaneamente mais imperativo e mais difícil pensar o mundo. Mais
imperativo, porque só assim se conseguirá romper com a cortina de estereótipos
que nos atordoam e paralisam, ainda que por vezes possam conduzir a ações mais
espetaculares, mas quase sempre, inconsequentes.
Mas também mais difícil, porque a tentação, nestes momentos adversos e
penosos, é para nos concentramos no nosso pequeno universo, deixando o
ceticismo, a depressão e a indiferença tomar conta de tudo o mais, privando-nos
assim cada vez mais do próprio mundo.
Pensar o mundo é, contudo, uma condição sine qua non para se enfrentarem as
dificuldades atuais, contrariando o provincianismo - hoje em dia tão
mediaticamente insuflado - que continua a dominar o País, impondo focalizações
tão insuficientes como erráticas sobre a natureza das nossas dificuldades, e
obstruindo a via de tantas soluções possíveis.
Pensar o mundo é, antes do mais e acima de tudo, compreender que a
globalização não é uma figura de retórica mas a realidade central do nosso
tempo, uma realidade em aceleração constante nos últimos trinta anos, com
consequências e efeitos de toda a ordem na nossa vida, seja do ponto de vista
económico, financeiro, social ou cultural.
Pensar o mundo é, por exemplo, refletir em análises como as que comparam os
salários médios dos países da OCDE com os da Ásia, dez vezes inferiores em
média. Ou nas inquietantes projeções que atiram o salário médio diário ocidental
para cerca de metade, dentro de quinze anos. Ou em factos como o de a China
investir metade do seu PIB, enquanto os países ocidentais não chegam a investir
um quinto do seu. Ou em surpresas como a da degradação escolar que ultrapassa
20% dos alunos da União Europeia, que saem da escola sem as competências básicas
de leitura, enquanto na China essa percentagem é de 4% (leia-se, a propósito, o
muito informativo e útil The decline of the West, de J. Moynihan).
Pensar o mundo é assumir estes dados e as suas já previsíveis consequências.
Confrontando-os sem artifícios com o anémico crescimento europeu, que data do
começo do século e não da crise dos subprime ou das turbulências do euro.
Pensar o mundo é compreender que hoje, nas sociedades pós-industriais do
Ocidente, como Daniel Cohen bem o explica no seu recente Homo Economicus, o
cerne da economia passou para os serviços e para a produção imaterial, com os
inegáveis ganhos de produtividade que a revolução informática tornou
possíveis.
Mas também, como ele enfatiza e quase sempre se esquece, com uma diferença
fundamental entre esta "revolução, a da informática, e as anteriores, a da
eletricidade no século XX e a da máquina a vapor no século XIX. É que estas
foram, em ambos os caos, revoluções energéticas, que aumentavam mecanicamente a
capacidade de trabalho, enquanto a revolução informática só permite aumentar a
produtividade intensificando o trabalho, reduzindo os tempos mortos e
organizando a multiactividade dos trabalhadores". E tudo isto faz com que o
crescimento mude de natureza e, sobretudo, de potencial, que se revela bem mais
reduzido do que aquilo a que nos habituámos: são os segredos do crescimento, de
que já aqui falei várias vezes....
Pensar o mundo é o que tem faltado à União Europeia desde que se deixou
embalar na miragem de uma moeda única que só traria benefícios e não teria
custos, hiperbolizando a sua capacidade e ignorando olimpicamente as
dificuldades, tanto internas como externas, que entretanto se multiplicavam. Até
ao ponto em que os desafios exteriores e os seus dese- quilíbrios e impasses
interiores a colocaram à beira do colapso, onde estamos. De um colapso a que
agora só um improvável federalismo político e um prudente protecionismo
estratégico nos poderão poupar.
Pensar o mundo é também o que Portugal precisa de fazer, se quisermos "dar a
volta" aos seus problemas, de modo a que o futuro seja realmente diferente do
passado. Portugal precisa de um novo projeto, ousado e realista, que não pode
ser dirigido nem pelos lobbies habituais nem pelos cleptocratas do costume, que
nos últimos anos atiraram Portugal para o indigenato europeu e para a
irrelevância internacional.
Agora, depois do fiasco dos milagres do memorando e do fracasso das suas
políticas, este projeto só pode ser concebido com Portugal de olhos postos na
Europa e no mundo, valorizando a sério em termos estratégicos o nosso potencial,
os nossos recursos naturais e humanos, apostando numa nova república. É essa,
agora, a missão mais urgente: pensar o mundo, repensar Portugal.
Manuel Maria Carrilho in dn.pt