Pensar o mundo, repensar Portugal - por Manuel Maria Carrilho

As crises também já não são o que eram. Uma crise era, normalmente, um acontecimento que tinha princípio, meio e fim, um momento instável que exigia uma decisão difícil que, uma vez tomada, lhe punha termo. Agora, tornou-se quase no seu contrário, transformou-se num estado de interminável indecisão, ou mesmo na imagem da própria indecisão, que se vive como se fizesse parte do ar que respiramos.
E esta crise, cada vez mais vivida como a atmosfera incontornável dos nossos dias, torna simultaneamente mais imperativo e mais difícil pensar o mundo. Mais imperativo, porque só assim se conseguirá romper com a cortina de estereótipos que nos atordoam e paralisam, ainda que por vezes possam conduzir a ações mais espetaculares, mas quase sempre, inconsequentes.
Mas também mais difícil, porque a tentação, nestes momentos adversos e penosos, é para nos concentramos no nosso pequeno universo, deixando o ceticismo, a depressão e a indiferença tomar conta de tudo o mais, privando-nos assim cada vez mais do próprio mundo.
Pensar o mundo é, contudo, uma condição sine qua non para se enfrentarem as dificuldades atuais, contrariando o provincianismo - hoje em dia tão mediaticamente insuflado - que continua a dominar o País, impondo focalizações tão insuficientes como erráticas sobre a natureza das nossas dificuldades, e obstruindo a via de tantas soluções possíveis.
Pensar o mundo é, antes do mais e acima de tudo, compreender que a globalização não é uma figura de retórica mas a realidade central do nosso tempo, uma realidade em aceleração constante nos últimos trinta anos, com consequências e efeitos de toda a ordem na nossa vida, seja do ponto de vista económico, financeiro, social ou cultural.
Pensar o mundo é, por exemplo, refletir em análises como as que comparam os salários médios dos países da OCDE com os da Ásia, dez vezes inferiores em média. Ou nas inquietantes projeções que atiram o salário médio diário ocidental para cerca de metade, dentro de quinze anos. Ou em factos como o de a China investir metade do seu PIB, enquanto os países ocidentais não chegam a investir um quinto do seu. Ou em surpresas como a da degradação escolar que ultrapassa 20% dos alunos da União Europeia, que saem da escola sem as competências básicas de leitura, enquanto na China essa percentagem é de 4% (leia-se, a propósito, o muito informativo e útil The decline of the West, de J. Moynihan).
Pensar o mundo é assumir estes dados e as suas já previsíveis consequências. Confrontando-os sem artifícios com o anémico crescimento europeu, que data do começo do século e não da crise dos subprime ou das turbulências do euro.
Pensar o mundo é compreender que hoje, nas sociedades pós-industriais do Ocidente, como Daniel Cohen bem o explica no seu recente Homo Economicus, o cerne da economia passou para os serviços e para a produção imaterial, com os inegáveis ganhos de produtividade que a revolução informática tornou possíveis.
Mas também, como ele enfatiza e quase sempre se esquece, com uma diferença fundamental entre esta "revolução, a da informática, e as anteriores, a da eletricidade no século XX e a da máquina a vapor no século XIX. É que estas foram, em ambos os caos, revoluções energéticas, que aumentavam mecanicamente a capacidade de trabalho, enquanto a revolução informática só permite aumentar a produtividade intensificando o trabalho, reduzindo os tempos mortos e organizando a multiactividade dos trabalhadores". E tudo isto faz com que o crescimento mude de natureza e, sobretudo, de potencial, que se revela bem mais reduzido do que aquilo a que nos habituámos: são os segredos do crescimento, de que já aqui falei várias vezes....
Pensar o mundo é o que tem faltado à União Europeia desde que se deixou embalar na miragem de uma moeda única que só traria benefícios e não teria custos, hiperbolizando a sua capacidade e ignorando olimpicamente as dificuldades, tanto internas como externas, que entretanto se multiplicavam. Até ao ponto em que os desafios exteriores e os seus dese- quilíbrios e impasses interiores a colocaram à beira do colapso, onde estamos. De um colapso a que agora só um improvável federalismo político e um prudente protecionismo estratégico nos poderão poupar.
Pensar o mundo é também o que Portugal precisa de fazer, se quisermos "dar a volta" aos seus problemas, de modo a que o futuro seja realmente diferente do passado. Portugal precisa de um novo projeto, ousado e realista, que não pode ser dirigido nem pelos lobbies habituais nem pelos cleptocratas do costume, que nos últimos anos atiraram Portugal para o indigenato europeu e para a irrelevância internacional.
Agora, depois do fiasco dos milagres do memorando e do fracasso das suas políticas, este projeto só pode ser concebido com Portugal de olhos postos na Europa e no mundo, valorizando a sério em termos estratégicos o nosso potencial, os nossos recursos naturais e humanos, apostando numa nova república. É essa, agora, a missão mais urgente: pensar o mundo, repensar Portugal.
Manuel Maria Carrilho in dn.pt