Como mudar o mundo? Entre desejos de rebuçados de mentol e da paz universal - Joana Azevedo Viana

Filósofos, escritores, políticos e um psicanalista juntaram-se na Holanda para debater porquê e como mudar o mundo. A participação na última conferência do Nexus bateu recordes
 
Slavoj Zizek encabeçava a lista de conferencistas esperados na semana passada em Amesterdão para o encontro anual do Instituto Nexus, criado pelo filósofo holandês Rob Riemen em 1994 para “promover o ideal europeu de civilização”.
Devido a problemas de saúde, o filósofo esloveno não pôde viajar até à Holanda. Mesmo assim, e apesar do desgaste visível, Riemen está satisfeito quando se encontra com a jornalista num café do Spui (lê-se Spau), famoso bairro central da cidade: falta um dia para a conferência que, antecipa o filósofo, terá grande sucesso. “Uma coisa engraçada aconteceu este ano: assim que anunciámos a ‘Como mudar o mundo’ no nosso site, começaram a chover inscrições”, conta. “Em dois dias os bilhetes esgotaram e o número de jovens inscritos é o maior em quase 20 anos.”
O recorde foi batido antes da alteração de planos, anunciada dias antes da partida da jornalista para os Países Baixos: Zizek, o filósofo esloveno que ganhou (ainda) mais popularidade com discursos inspiradores nos encontros do Occupy Wall Street no ano passado, tem um “problema cardíaco” que deu de si e o pôs de cama. “Quando lhe perguntei quem é que poderia substituí-lo”, conta Rob no café Luxembourg (piada que repetiria na abertura da conferência) “ele foi claro: ‘Só há uma pessoa melhor que eu para me substituir e essa pessoa é o Alain Badiou’.”
Zizek pegou no telefone e ligou ao “mentor”, que não recusou o convite e que, depois dos debates num teatro da Leidseplein, partilhava essa historieta com a jornalista. Uma que terminou assim: “Ele [Zizek] está numa fase fulcral da sua vida, em que tem de perceber que já não é como tu, está a ficar como eu. Dantes andava a correr de um lado para o outro, mas agora tem de acalmar, a doença dele assim o obriga.”
Ao contrário do que se esperaria de uma figura tão reconhecida da filosofia moderna, Badiou é uma das pessoas mais simpáticas e calorosas no debate em Amesterdão. Solta gargalhadas audíveis sempre que larga ideias óbvias e aposta na desconstrução do tema da conferência para a inaugurar.
“Para percebermos como mudar o mundo temos de perceber os significados dessas palavras: como, mudar, mundo”, diz às cerca de mil pessoas confortavelmente sentadas no teatro Stadsschouwburg, que pagaram entre 20 e 60 euros para assistir à conferência. “Se achamos que o mundo deve ser mudado e queremos mudá-lo temos de acreditar na possibilidade do impossível, pensar em novas formas de união e numa nova igualdade. O resultado está escondido na mudança em si mesma.”
Chavões à parte, para quem está mais ou menos inteirado do pensamento de Badiou e da sua teoria do “evento” – uma ruptura num dado momento do tempo que altera o curso das coisas (seja na vida pessoal, na política nacional ou o rumo do mundo inteiro, porque não?) – o discurso de abertura não foi inédito. A novidade foi o efeito desse discurso nos restantes conferencistas, que nos deixa a pensar se Zizek, doze anos mais novo que Badiou e bem mais cáustico do que o mentor, teria a mesma força.
Que mudança? Inspirados pelas palavras de Badiou, os convidados de Riemen entraram em discussões acesas sobre pontos de vista divergentes, em dois debates num domingo pré-neve que terminaram sem nenhuma conclusão. Afinal, mudar o mundo não é pêra doce e quem esperava respostas para a Crise, essa coqueluche da actualidade, saiu de cabeça baixa.
Dizia Schopenhauer que, para muitas pessoas, os filósofos são noctívagos inoportunos que as perturbam durante o sono. Acrescentamos nós que, na “Como mudar o mundo”, alguns dos presentes não queriam ser acordados. Pelo menos a julgar por algumas reacções aparentemente guiadas por preconceitos e frases feitas, que os puseram ora a aplaudir ideias completamente opostas, ora a ficar meia hora numa fila interminável no intervalo para receber um autógrafo de Badiou, a estrela-maior, escrevendo o seu nome em post-its para o autor saber a quem dedicar sempre a mesma frase: “Para XXX, depois de uma conversa em Amesterdão.”
Na realidade, a conversa só aconteceu entre os cabeças-de-cartaz do encontro. Ao lado de Badiou, Riemen sentou o psicanalista Daniel Pick, a filósofa húngara e comunista desencantada Agnes Heller, o especialista em relações públicas britânico Rory Sutherland e o filósofo conservador Roger Scruton.
A receita podia ser desastrosa, mas acabou por resultar num prato interessante de ideias, em que Heller – uma mulher pequena, afundada na sua cadeira rodeada de homens – foi quem deu mais luta na discussão sobre o que vivemos actualmente. E o que é isso? “A ficção consensual do sim que é a democracia”, dizia Badiou, pondo Scruton e Sutherland a rir entredentes enquanto se preparavam para falar sobre os benefícios da propaganda e do marketing.
Engraçado discutir a tal crise quando ninguém sabe bem que crise(s) vivemos. Não só pareceu que ninguém fora de Portugal faz sequer ideia de que já somos a Grécia (alguns dos conferencistas ficaram pálidos quando ouviram descrições da situação, já no jantar organizado pela Câmara Municipal de Amesterdão), como tudo parece entrar nas áreas cinzentas da realidade. Crise de amor?, parecia propor a feira do livro no primeiro piso do teatro onde o mais vendido foi o “In Praise of Love” de Badiou. Crise ecológica?, propôs Margaret Atwood, autora canadiana nomeada para o Nobel da Literatura que se concentrou no problema maior que é o ambiente. Ou uma crise de demasiada tecnologia?, perguntou o cibercéptico bielorrusso Evgeny Morozov, ao lado de Atwood, do deputado britânico conservador Rory Stewart, do filósofo “céptico” (assim definido por Riemen) John Gray e do indiano naturalizado americano Parag Khanna, especialista em relações internacionais.
Se calhar a crise, fez parecer Stewart, tem mais a ver com “algo que falta na actual sociedade”, em que os políticos são demonizados e as pessoas se dividem em dois extremos. “Em 1962, a NPR [rádio americana] contactou o então embaixador do Reino Unido nos EUA para lhe perguntar o que gostaria de receber no Natal”, contou o jovem político à audiência, “e ele disse que gostava de receber uma caixinha de rebuçados de mentol. Quando a resposta foi para o ar, a NPR afinal tinha contactado todos os embaixadores em Washington e todos queriam a paz no mundo, menos o nosso embaixador, que queria uma caixinha de rebuçados de mentol.”
Estaremos condenados a balançar entre os desejos de caixinhas de rebuçados de mentol e um mundo onde todos vivem felizes e em igualdade? Saídos da conferência, apenas uma hipotética resposta paira no ar, cortesia de, claro, Badiou. “Como mudar o mundo? Tornando-nos parte subjectiva das consequências dos eventos. Escolham a nova felicidade e paguem o seu preço.”
Joana A. Viana in ionline.pt