Dos vícios e das virtudes - José L. N. Martins

Nenhum ato isolado define um homem. A vida humana é feita de um conjunto enorme de momentos, repetições, escolhas, encontros, desencontros e reencontros. Não há atos isolados. A construção da essência de cada um exige um trabalho guerreiro permanente. Vamos sendo o que vamos escolhendo, com alguns momentos mais decisivos que outros, mas sem grandes sobressaltos. É a linha que vamos traçando que nos definirá.
Não há ninguém que se torne viciado no que quer que seja sem que tenha atingido um ponto de obstinação. O vício é uma dependência porque, ao fim de uma série de decisões, o viciado abdicou do controlo da construção de si mesmo em favor de um qualquer modelo estranho à sua felicidade. Viciou-se.
Não há heróis de um ato só. É-se virtuoso à custa de praticar sucessivamente o bem, multiplicando-o.
Não pode nenhum homem julgar, de forma completa, outro. Poder-se-ão julgar os atos mas não as histórias. Julgar é um ato viciado e viciante, que nos retira a capacidade de permanecermos focados na concretização das melhores possibilidades da nossa existência.
Nos restantes seres vivos tudo parece ter uma natureza pré-programada, uma definição prévia. A realidade e a dignidade humanas fundam-se no carácter completamente aberto do amanhã. Não somos pré-programados. Decisão após decisão vamo-nos construindo, aparecendo ao mundo e a nós mesmos, tal como fomos capazes de nos ir fazendo, tal como somos, tal como quisemos ser.
Será talvez um mistério a razão pela qual há tantos homens que são carrascos e vítimas de si mesmos, condenam-se a um inferno que não carece de outro que não esse seu eu medonho para perpetuar uma pena de infelicidade irrevogável. Por que desejarão o seu próprio mal? Talvez porque há sempre um caminho a fazer e, seguir rumo ao bem, pode ser muito doloroso, um pé para diante de outro, sempre a subir, degraus sempre mais altos que os anteriores... há quem duvide, de si mesmo, de tudo, encolha o ombros e sucumba na ânsia de descansar, escolhendo não escolher, desiste, uma e outra vez, até se dar conta que está no fundo do poço.
Da dependência há apenas uma, e uma só, hipótese de resgate: o mesmo eu que caiu, levantar-se. Através de uma longa sequência de decisões árduas pelo bem. Nunca é apenas uma, seria fácil demais; e seria injusto. A felicidade é um prémio não um direito universal. Conquistam-na os que arriscam corajosamente seguir tantas vezes pelo caminho mais duro; aqueles que, apesar das montanhas de dúvidas, encontram forma de fazer forças e com elas avançam no caminho do bem.
A verdade do Homem, a verdade de cada um de nós, é-nos revelada por nós mesmos através das nossas escolhas. Mas, nunca num ato isolado. Ninguém fica desgraçado por uma desgraça só. Todos caem. Uma e outra vez. Assim como todos acertam, bastantes vezes... o que importa mesmo é o caminho feito de forma livre e responsável. Ou para o céu ou para outro lado qualquer...
A maior de todas as virtudes é ser-se uma perfeição construída à custa de uma multiplicidade de passos imperfeitos, erros, quedas e tantos, tantos, recomeços... a Felicidade é o resultado de uma orientação totalmente livre e corajosa para o bem.
A vida humana será uma espécie de navegação por entre o previsto e o imprevisto, do sonho puro à realidade crua, cada um de nós está nas suas próprias mãos. Sempre. Porque em cada novo dia tudo está, feliz e infelizmente, em aberto...
José Luís Nunes Martins in ionline.pt