
Centrar-nos-emos no problema filosófico do conhecimento,
visando uma elucidação das questões nucleares sobre a sua natureza e condições
de possibilidade. O objectivo principal será o de justificar o conhecimento, dar conta dos fundamentos que o
alicerçam e mostrar a viabilidade do acesso cognitivo ao mundo real. Conhecer
pressupõe, com efeito uma relação intencional que informa toda a experiência e
lhe dá um carácter de abertura e de revelação.
Toda a reflexão epistemológica que pretenda um
esclarecimento sobre problemas relacionados com o estatuto das várias ciências,
as suas metodologias, os âmbitos e limites dos vários saberes, a sua
objectividade, universalidade e validade, requer uma investigação prévia sobre
o próprio conhecimento: um conhecimento
do conhecimento e uma defesa do seu próprio estatuto e da sua fiabilidade.
Esta tarefa consiste numa crítica,
que deverá assumir uma certa atitude transcendental,
orientada para a reconstrução – e não descontrução
– do processo cognitivo desde os seus fundamentos.
Não basta, no entanto, para delimitar o campo do programa epistemológico,
considerar a questão enunciada. O problema do conhecimento pode ser considerado
um dos temas centrais da Filosofia. Qual a perspectiva peculiar, própria da
investigação epistemológica? Centremos a atenção na noção de episteme, da qual deriva o termo
Epistemologia. Tradicionalmente episteme
tem sido traduzida por 'conhecimento'. No entanto, rapidamente se comprova como
as discussões filosóficas em torno da episteme
- reportando-nos à tradição clássica da filosofia platónica e aristotélica - se
revelam peculiares e não coincidentes com a tradução do termo grego
simplesmente por 'conhecimento'. Na tradição platónica, a discussão sistemática
em torno de episteme no Teeteto, uma vez estabelecido que esta
não é percepção nem simplesmente opinião verdadeira, põe o problema de saber o
que é necessário acrescentar à opinião verdadeira para que esta constitua episteme. E esta é a questão mais comum
a partir da qual partem muitas das actuais exposições básicas da Epistemologia:
poderia definir-se, neste sentido como o estudo da justificação da crença ou
opinião. "Quais as crenças que são justificadas ou fundamentadas e quais
não o são?", "Qual a diferença entre conhecer verdadeiramente, e ter
uma mera crença ou opinião verdadeira?" "Qual a relação entre crer e
conhecer?", "Porque é que pensamos ou cremos que p ?" seriam perguntas centrais da epistemologia.
A definição proposta - o estudo da justificação ou
fundamentação da crença - parece, no entanto demasiado restritiva, pois
qualquer outro estado cognitivo que não o da crença verdadeira justificada,
ficaria fora das suas fronteiras: a dúvida, conjectura, probabilidade,
interrogação constituem estados cognitivos de indubitável interesse para a
epistemologia. Não há dúvida que o problema da justificação ou fundamentação
da mera crença verdadeira é fulcral na epistemologia, mas não é o único. O
conhecimento é tradicionalmente, desde Platão, caracterizado como crença
justificada, mas é o próprio processo cognitivo que carece, ele próprio, de uma
justificação, que pressupõe a
elucidação da questão originária sobre o
que é conhecer.
Deverá notar-se que, pela própria natureza da
questão central que se propõe tratar, é imprescindível o retorno ao exame de
algumas tradições que marcam a história do pensamento. De algum modo é certo
que a história da epistemologia é coextensiva à história da própria filosofia.
A busca de um progressivo crescimento e da compreensão do próprio conhecimento
constitui um objectivo constante de qualquer filósofo, o que requer uma capacidade
de distinguir as crenças verdadeiras das falsas. Isso exige a formulação de um
critério para averiguar dos fundamentos que, de facto, constituem uma
justificação dessas crenças. A busca da verdade assenta na busca da
justificação. E esta preocupação está presente na reflexão epistemológica desde
o pensamento clássico até aos nossos dias. Embora o problema da justificação da
crença não constitua o tema exclusivo da antiga epistemologia, está de algum
modo presente em todos os autores clássicos que examinam o problema do
conhecimento.
A tradição filosófica -
designadamente Platão e Aristóteles – constitui um referencial presente no
desenvolvimento de alguns dos tópicos. Isto não significa que se adopte uma
perspectiva historicista, ou se pretenda apresentar uma história da
epistemologia. Pelo contrário, adoptar-se-á um ponto de vista
anti-historicista. A referência a autores e textos do passado é sempre motivada
pela consciência da actualidade e mesmo perenidade de problemas e questões que
desde a Antiguidade até aos nossos dias não podem deixar de comparecer no
horizonte filosófico. O que se procura é pensar com esses autores encontrando
sintonias e afinidades com as suas questões, procurando compreender até que
ponto um pensador de tempos passados pervive ainda nas interrogações constantes
da filosofia. A reflexão sobre o pensamento dos seus predecessores constitui
sempre para o filósofo um poderoso meio para encontrar luminosas alternativas
para os problemas dos quais se ocupa, e o seu próprio horizonte só ganhará em
amplitude e profundidade com essa reflexão. A atitude a adoptar será
precisamente a de abrir um amplo diálogo, no qual comparece o passado como
presente, e o presente se assume como reiteração de um discurso já encetado há
muito, mas sempre vivo e em acção. Se lidamos assim com as tradições, é porque
o que nos interessa são "histórias que nos impulsionem a ir para além das
histórias", empregando palavras de MacIntyre.
Esta atitude em relação
às diferentes tradições filosóficas pressupõe a rejeição de uma concepção
discontínua do discurso racional, baseada sobretudo na noção de paradigma de
Kuhn: reconhece-se uma certa incomensurabilidade entre diversos sistemas
conceptuais, cosmovisões, pontos de vista, mas essa incomensurabilidade não
significa intraducibilidade. Traducibilidade e compatibilidade não são o mesmo
que comensurabilidade.
Por outro lado, a
adopção de um ponto de vista não significa de modo algum um ponto de vista
absoluto e englobante; trata-se de abrir um caminho a seguir, de estabelecer um
percurso mantendo sempre no horizonte outros pontos de vista possíveis, outras
perspectivas que não se excluem necessariamente, mas que perpassam
transversalmente num entrosamento inevitável.
A interferência das discussões epistemológicas
com alguns dos contributos do exame a partir de outras áreas com afinidades
nítidas com a Epistemologia - a Fenomenologia, a Filosofia da Psicologia, a
Filosofia Analítica e a Filosofia da Mente - como é o caso, por exemplo, da
análise das noções de percepção, crença, juízo e proposição, verdade, certeza e
evidência, etc. - será inevitável. Considera-se que essas interferências, ou
melhor o tratamento destas noções numa perspectiva transversal, constituirá um
enriquecimento na elucidação filosófica dessas mesmas noções. Por isso mesmo, a
referência a alguns autores que não podem ser considerados propriamente como
epistemólogos - como por exemplo Brentano, Frege, Husserl, Wittgenstein, entre
outros - ocorrerá com alguma frequência, com o intuito de ampliar a elucidação
de questões intimamente relacionadas com a problemática do conhecimento e que
não se podem restringir a uma delimitação rígida do campo da Epistemologia. O
estudo da percepção e do juízo, da verdade e da evidência será objecto de uma
reflexão aprofundada que ultrapassa as fronteiras de uma definição e demarcação
demasiado estrita da Epistemologia.
Por último, uma palavra sobre a atitude
céptica. Quando se trata do conhecimento é inevitável que nos rondem dúvidas,
diferentes tipos de dúvidas: podemos confiar no que nos apresentam os nossos
sentidos? Os dados da percepção serão fiáveis? O que nos aparece, o que se nos
apresenta será verdadeiramente uma realidade independente do nosso modo de
percepcionar, de conhecer? Não será tudo um sonho? Uma ilusão? E, no limite,
não estaremos a ser constantemente enganados por um «génio maligno»?
Perante as variadas atitudes de cepticismo, é possível
adoptar diferentes posições:
a) enredar-se em
tentativas de argumentos contra os
argumentos cépticos, uma discussão directa na qual se admite, até certo ponto,
as próprias dúvidas que se tentam ultrapassar;
b) contornar esses
argumentos, evitando um confronto directo e colocar-se à partida numa atitude
realista, de um realismo duro no qual
se toma como inquestionável a aceitação de uma realidade objectiva,
independente do nosso próprio ponto de vista; mesmo reconhecendo o grande
abismo entre os fundamentos das nossas crenças sobre o mundo e os conteúdos
dessas mesmas crenças, a falibilidade do que se nos apresenta, em contraste com
a consistência ontológica do real, tenta-se o salto sobre o abismo sem o
anular. Exemplos desta atitude são por exemplo as “teoria heróicas” (empregando
uma expressão de Thomas Nagel) como a teoria das Formas de Platão, a defesa
cartesiana da fiabilidade do conhecimento humano em geral assente numa prova a priori da existência de um Deus à
prova de toda a confiança. E em tempos mais recentes, com nítidas tonalidades
platónicas, as propostas de um mundo objectivo, real, constituído por entidades
ontologicamente consistentes, não submetidas
à precaridade do nosso conhecimento sensível, como é o caso do «terceiro
mundo» de Frege, um mundo de objectualidades independente do nosso modo de as
apreender;
c) desconstuir a dúvida
céptica apontando-lhe a sua falta de fundamento – quem duvida, sabe já alguma
coisa, e tendo em conta o senso comum,
fará sentido a formulação de dúvidas radicais que ponham em causa qualquer
forma de conhecimento, ou de possibilidade de acesso ao mundo externo e a uma
realidade objectiva? Ao céptico caberá a tarefa de fundamentar a sua dúvida,
caso contrário ela será rejeitada como sem sentido nem fundamento. Neste caso,
há uma rejeição do abismo entre realidade e aparência, e uma afirmação
explícita de nos encontrarmos já do outro lado. Esta seria a atitude de Moore
e, apesar de algumas divergências, da de Wittgenstein ("O cepticismo não é
irrefutável mas obviamente falho de sentido por pretender pôr em dúvida o que
não pode ser perguntado. E isto porque só pode haver dúvida onde pode haver uma
pergunta, e uma pergunta só onde pode haver uma resposta, e esta só onde algo pode ser dito" (Tractatus 6.51);
d) adoptar uma outra
concepção do real, não como algo totalmente alheio ao nosso ponto de vista,
transcendente ao próprio modo de percepcionar e conhecer, mas um real que
abarca também todos os nossos processos cognoscitivos, o próprio sujeito e suas
condições de acesso ao mundo. Isto significa situar-se a montante do dilema
aparência-realidade, subjectividade-objectividade, mundo-tal-como-se-nos-apresenta
e mundo-em-si, ou em termos mais radicais entre ser e conhecer. Um mundo em si,
independente do nosso modo de conhecer, alheio às condições de cognoscibilidade
seria de facto impensável, não por transcender em absoluto o que se nos apresenta,
mas porque esse mundo não nos incluiria e, como tal, seria uma realidade
incompleta, truncada. O que se pretende afirmar é a conaturalidade entre
realidade e conhecimento, numa posição que se poderia denominar de realismo
transcendental.