Compreender os problemas filosóficos - por Sofia Miguens

Será que a história da filosofia é essencial? A filosofia, o subjectivo e o objectivo
No seu livro O que quer dizer tudo isto?, que é uma introdução aos problemas da filosofia, Thomas Nagel parte do princípio de que é impossível compreender os textos dos filósofos contemporâneos, usualmente escritos numa linguagem técnica e especializada, sem se compreender os próprios problemas com que estes se debatem. Nagel defende que para uma tal compreensão a história da filosofia não é essencial: o que importa são os próprios problemas e não a erudição. Se um problema filosófico é um verdadeiro problema, ele será um problema para nós, no presente, e deverá poder ser analisado sem qualquer referência histórica erudita. Nagel faz questão, em O que quer dizer tudo isto? de não citar um único filósofo. No entanto, a verdade é que nas entrelinhas do texto qualquer conhecedor de filosofia reconhece ideias de Kant, Hume, Wittgenstein e vários outros autores.
A caracterização geral que Nagel faz dos problemas da filosofia em O que quer dizer tudo isto? é a seguinte. A filosofia analisa ideias e práticas que tomamos usualmente como garantidas quando pensamos e agimos (ideias como por exemplo 'tempo', 'número', 'certo' e 'errado', e práticas tão gerais e básicas como o conhecimento e a linguagem). Para a teoria da mente e do conhecimento, interessa-nos particularmente a análise que Nagel faz das ideias e práticas relativas ao conhecimento, à realidade, à mente e à linguagem. Esses tópicos são para Nagel casos particulares da questão mais geral que é a questão da relação entre pensamento e mundo físico, ou mais precisamente, a questão da relação entre objectividade e subjectividade. Numa realidade sem pensamento, num mundo que não incluísse uma cisão entre pensante e pensado, não haveria lugar para questões acerca do verdadeiro, do bem, do belo, do justo, etc. A ideia de Nagel é portanto que as questões da filosofia surgem não tanto de uma tradição textual determinada como de um hiato entre o objectivo e o subjectivo que é característico do nosso mundo. Esse hiato é aliás insusceptível de ser eliminado, já que, de acordo com Nagel, nenhum tipo de conhecimento ou pensamento constituirá alguma vez uma 'visão sem perspectiva', ou a partir de lugar nenhum (view from nowhere), como se fosse de um ponto de vista de Deus (God's eyeview).

O problema epistemológico. As crenças.
O problema que nos interessa de entre os problemas da filosofia que Nagel descreve em O que quer dizer tudo isto? é o problema epistemológico. Este pode ser resumido através de questões como estas: Em que é que eu hei-de acreditar? e Como posso justificar as minhas crenças? A partir de agora considerarei que o problema epistemológico é o problema da justitificação das crenças. Para compreender uma tal descrição do problema epistemológico será necessário saber o que é crença e o que é justificação. As crenças são estados mentais com conteúdo, estados dirigidos (sobretudo, mas não apenas) para fora da mente. Esta característica das crenças (o facto de elas serem assim 'dirigidas-a') é a sua intencionalidade. A Intencionalidade (=aboutness) pode ser considerada como uma marca que distingue o mental por entre as coisas que existem. Repare-se que sem crenças não poderíamos viver ou agir, pois são as crenças que guiam as nossas acções. Se eu não acreditar que tenho um corpo, que o meu corpo é este, e que existem objectos exteriores a mim, em relação aos quais tenho desejos variados, não terei razão para cumprir os mais elementares movimentos no mundo, nem sequer aqueles que asseguram a sobrevivência desse corpo. No entanto, as nossas crenças não são usualmente - nem têm que ser - explicitadas ou explícitas para nós próprios. Não é necessário que as crenças sejam explicitadas ou justicadas para funcionarem como crenças, permitindo-nos viver e agir. Ter uma crença não é portanto a mesma coisa que saber que se tem uma crença, nem é a mesma coisa que poder dizer que se tem exactamente essa crença e que se sabe como justificá-la (justificar uma crença é dar razões, enumerar provas). Embora as minhas crenças sejam de certa maneira pretensões de verdade (se eu acredito alguma coisa acredito que o que acredito é verdadeiro) elas não são pretensões de verdade explícitas. Isto significa que nós não podemos dar razões claras, ou provas, em relação à maior parte das coisas em que acreditamos, quer dizer, não estamos prontos para justificar racionalmente desde logo as nossas crenças de forma auto-consciente, imediata e sem problemas. Experimente-se por exemplo perguntar: Porque é que eu acredito que existe um mundo exterior ao meu pensamento? Porque é que eu acredito que as outras pessoas são seres conscientes? Porque é que eu acredito que esta mão com que escrevo é minha? Porque é que eu acredito que quando decido mover a mão para escrever a palavra 'palavra' ela me obedece? Porque é que eu acredito que 'mão' significa mão? Porque é que eu acredito que eu sou eu? (Estou a supôr que todas as pessoas que lêem estas palavras têm de facto as crenças mencionadas).
A justificação destas crenças não está pronta a ser dada a quem no-la pedir. O facto de termos uma crença não significa só por si que sejamos capazes de explicitar as razões por que a temos, i.e. que sejamos capazes de a justificar. É por isso que o problema epistemológico, o problema da justificação das crenças, é um problema posterior ao estado comum a todos os humanos e a muitos animais que é o estado de ter crenças. A questão (psicológica, cognitiva) das crenças, do conteúdo destas e da relação das crenças com a realidade física dos sistemas cognitivos é em grande parte tratada no âmbito da filosofia da mente. Pertencendo ou não em primeiro lugar à teoria da mente, a noção de crença é básica em teoria do conhecimento, e vai ser a partir de agora considerada como estando minimamente definida como estado mental intencional, proposição tomada como verdadeira, ou atitude proposicional.

Conhecimento
Se posteriormente pretendermos definir o conhecimento a partir da crença, poderemos afirmar que o conhecimento (se é que o conhecimento é possível: um céptico radical diria que não (7) ) é constituído por crenças especiais por entre as crenças. De facto, as crenças que constituem conhecimento são crenças verdadeiras e especialmente bem justificadas. A esta ideia segundo a qual a análise daquilo em que consiste o conhecimento nos conduz às crenças justificadas e verdadeiras chama-se 'definição tripartida do conhecimento'. De acordo com essa definição são condições necessárias e em conjunto suficientes do conhecimento de p que (1) a pessoa A acredite que p, que (2) p seja verdadeira, que (3) p seja sustentada por provas. O análise da justificação das crenças mostra que o facto de as crenças não serem perfeitamente explícitas nem facilmente individuáveis não é o seu único problema. Outro problema que surge mal começamos a pensar no processo de justificação das crenças é o facto de a maioria das crenças se apoiar noutras crenças, o que faz temer uma regressão infinita da justificação. Perante a apresentação de cada crença poder-se-ia perguntar 'Porque acreditas nisso?' continuando sempre a obter novas crenças que funcionam como razões para as crenças anteriores. Aparentemente, a única saída seria encontrar uma crença que não se apoiasse noutras crenças, uma crença básica, ou um tipo básico de crenças, que fossem auto-garantidas. Este é o ideal do fundacionalista. O fundacionalista olha para o conhecimento da seguinte maneira. Para ele existem crenças básicas (que são auto-garantidas) e crenças não básicas (i.e. crenças mediadas, garantidas ou justificadas por outras crenças). O empirismo clássico, por exemplo, é um tipo de fundacionalismo. Para o empirista clássico as crenças relativas a afecções sensoriais são básicas e auto-garantidas. A afirmação cartesiana do cogito corresponde a um outro tipo de fundacionalismo: o cogito é precisamente uma crença básica e auto-garantida.

Mundo Real Exterior

Para avançarmos na análise do problema epistemológico convém considerar algo que não é já do nível da crença comum a todos os homens e a alguns animais. Acontece que embora as nossas crenças sejam na sua maioria acerca do mundo exterior, se pensarmos veremos que realmente nós só temos acesso directo ao interior da nossa própria mente. Quer dizer, mesmo que o meu pensamento seja acerca desta mesa na minha frente, ele é o meu pensamento, portanto eu tenho acesso à mesa 'exterior' através do meu pensamento, e não sendo a mesa ou possuindo a mesa de alguma forma em mim. O pensamento-de-mesa é acerca da mesa, não é idêntico à mesa (e, já agora, não é também acerca do cérebro nem é idêntico ao cérebro).
A primeira coisa que o facto de notar que eu só tenho acesso directo à minha própria mente (e que quando falo do que sei só posso falar em primeira pessoa) me permite, é constatar a existência do pensamento e a minha natureza mental. As coisas afiguram-se-me do seguinte modo: existe pensamento e esse pensamento é o meu pensamento (Wittgenstein poderia dizer 'O mundo é o MEU mundo mas - estranhamente - o sujeito não pertence ao mundo', i.e. eu, enquanto sujeito pensador do mundo, não estou lá, nesse mundo).
É claro que esta não é uma coisa em que eu penso constantemente quando creio sem problemas que há uma mesa na minha frente, ou quando coloco coisas em cima dela. Para isso tenho que acreditar que a mesa está aqui e que não desaparece, que eu sou capaz de manipular estes objectos, que a mesa é capaz de os sustentar, etc. Eu penso na mesa e nos objectos, não penso que sou eu que penso na mesa e nos objectos, e que só tenho acesso à mesa a aos objectos através dos meus estados mentais. Outra das características curiosas dessa mente à qual eu tenho acesso directo (por oposição ao acesso indirecto que eu tenho à mesa ou a outros 'objectos' dos meus estados intencionais) é que por mais que ela seja difícil de capturar conceptualmente (pois afinal o que é isso de eu ser eu? O que é isso de eu ser esta mente e não outra mente ou outra coisa?), ela parece ser sempre a mesma, i.e. eu, seja eu o que for, não passo do estado de ser-um-eu-1 para o estado de ser-um-eu-2, diferente do primeiro.
Em suma, de tudo isto interessa sobretudo notar que embora me pareça ter consciência directa daquilo que é pensado e experienciado, de facto é apenas  através de estados mentais que eu penso e experiencio. Por isso, eu só tenho acesso directo à mente e a nada mais. Esse acesso é além do mais privilegiado, na medida em que a mente a que eu tenho acesso directo é minha e só minha. I.e., só eu tenho esse acesso directo a essa mente (aliás nem sei se mais alguém existe...).
No entanto, mesmo se eu apenas penso em alguma coisa através de estados mentais, eu não penso nesse estados mentais directamente (estados mentais acerca de estados mentais são estados mentais especiais, chamados estados introspectivos). Eu apenas sou consciente dos seus objectos intencionais, do seu conteúdo. Por isso não sei se esse acesso directo à mente, às coisas pensadas, é um acesso incorrigível ao modo como são verdadeiramente as coisas a cujas aparições mentais acedo. Eu teria um acesso incorrigível se fosse totalmente impossível enganar-me acerca da existência ou da natureza das coisas pelo facto de ter acesso directo aos conteúdos mentais que são acerca dessas coisas. Mas, no melhor dos casos, parece que a incorrigibilidade do acesso à mente é incorrigibilidade do acesso ao modo como as coisas aparecem à mente, e apenas isso.
Assim sendo, há aqui outro problema: se eu só tenho acesso à minha mente, que pode ser chamada provisoriamente um 'interior mental' (o que não é idêntico a ser um interior físico, como o interior de uma caixa), como é que eu sei que as coisas pensadas - ou outras às quais a sua aparição mental corresponda - existem como coisas independentes, exteriores ao pensamento dessas coisas por mim? Como é que eu sei, em geral, que existe um mundo real exterior, 'independente e continuado' além da mente à qual tenho acesso directo?
É este o ponto em que o problema epistemológico conduz ao problema ontológico e metafísico, que é o problema de saber o que é que existe, o que é que há e se o que existe existe em si, de forma completamente independente do facto de ser pensado. Se o que existe existe de forma completamente independente do facto de ser pensado, nesse caso a realidade será definível como existência em si. Se de alguma maneira aquilo que existe se correlaciona com o ser pensado, a realidade será melhor definida como algum tipo de verificabilidade.
Repare-se no entanto no seguinte: é muito mais simples afirmar que esta mesa existe em si, independentemente de ser pensada, do que dizer que o passado e o futuro, ou os números, ou as possibilidades alternativas dos cursos das coisas, existem independentemente de serem pensados. Noutras palavras, a própria definição de realidade é problemática, e problemática de forma diferente de objecto para objecto. É desta situação que surgem as polémicas entre os realistas, que afirmam que aquilo que existe existe em si, de forma independente da mente (humana ou de quaisquer seres pensantes), e os anti-realistas, que afirmam que o que existe depende de certa forma do pensamento. Um realista tenderá a afirmar que a realidade se alarga para além do alcance do pensável e que podem existir coisas que são inconcebíveis por nós. O anti-realista ligará a definição de realidade aos métodos de pensamento de que dispomos para abordá-la. O que há está de certa forma ligado àquilo que nós, ou os seres humanos futuros, ou outros seres, podemos conceber. Pensar em qualquer coisa que não se consegue conceber é uma ideia que não faz sentido, do ponto de vista do anti-realista
É por isso que por exemplo Nagel afirma (1986: 91) que o anti-realismo envolve um 'teste epistemológico de realidade'.
A ideia de teste epistemológico de realidade está muito especialmente ligada ao estatuto concedido ao conhecimento científico do mundo. Nagel, que é um realista, pretende afastar o teste epistemológico de realidade e resistir à "natural tendência para identificar a ideia de mundo tal como este realmente é com a ideia do que pode ser revelado, no limite, por um crescimento indefinido na objectividade de ponto de vista" (Nagel).
Note-se finalmente que se, perante a questão da dependência ou independência da realidade em relação ao pensamento, argumentarmos que "Se as coisas não existissem não seriam pensadas ou percebidas", isto não nos exime de problemas. De facto, com esse argumento estaremos a pressupôr a confiança na relação entre a mente e o mundo real exterior, que é precisamente o que está em causa.

Mundo real exterior como sonho ou ilusão
(...) Perguntar o que é a 'realidade real' e se alguma coisa me pareceria diferente se tudo existisse apenas na minha mente constitui uma tentação perene. Se for possível argumentar plausivelmente que nada me pareceria diferente se tudo existisse apenas na minha mente, então estará dado o passo essencial para defender que a realidade é toda ela ilusória, toda ela um gigantesco sonho bem urdido.
A ideia do carácter ilusório da realidade acompanha desde tempos imemoriais o pensamento filosófico e religioso. Platão (c.429-347) distinguiu o Mundo Sensível (supostamente ilusório) do Mundo Inteligível (realmente real). Descartes (1596-1650) experimentaou a ideia de 'totalidade da realidade como engano' através da figura imaginária do Génio Maligno. Kant (1724-1804) distinguiu o Fenómeno, ou âmbito do cognoscível, de um Númeno, que pelo menos na sua acepção positiva é um em-si pensável para além do fenómeno (o qual se torna assim aparência ou pelo menos aparição de). No budismo, a ideia de carácter ilusório do mundo é nuclear, sendo por exemplo o sofrimento humano explicado precisamente pelo prendimento dos homens a essa ilusão. A libertação (nirvana) supõe o desprendimento da ilusão do mundo, inclusive o desprendimento em relação a um eu distinto do resto do mundo, já que a separação do eu faz parte faz parte da ilusão do mundo. O par Vontade / Representação com o qual A. Schopenhauer (1788-1860) pensa a natureza do mundo está imbuído da imagética budista do carácter ilusório do mundo (Schopenhauer chega inclusivamente a considerar que o dom filosófico possuído por alguém se revela precisamente na capacidade de imaginar por vezes que os homens e as coisas não são mais do que fantasmas ou imagens de sonhos). O par conceptual que rege a interpretação estética da existência proposta por F. Nietzsche (1844-1900) - o par Apolíneo / Dionísiaco - é por sua vez inspirado em Schopenhauer, e portanto indirectamente inspirado pelo budismo e pela ideia de ilusoriedade da realidade (é certo que Nietzsche subverte totalmente as recomendações morais budistas perante o carácter ilusório da realidade). Os exemplos poderiam ser multiplicados, pois possivelmente não existiu um filósofo que não tivesse sido tentado de alguma forma pela distinção aparência/realidade.

Aparência/ realidade
Quanto a esta distinção, é preciso notar o seguinte: para podermos fazer sentido da distinção aparência / realidade temos que poder comparar 'o-que-corresponde' com 'o-que-não-corresponde' à 'verdadeira realidade'. Ora, é impossível comparar coisas se não existem duas coisas para ser comparadas. E a própria ideia de contraste ou comparação supõe a possibilidade de estarmos simultaneamente, ou pelo menos alternadamente, dentro e fora da nossa mente, para termos acesso à aparência e à verdadeira realidade, a qual justificará o estatuto de aparência da aparência. Ora, isso não parece possível.
A ideia segundo a qual não podemos alcançar cognitivamente a verdadeira realidade pelo facto de estarmos cognitivamente limitados a aparências contraditórias, entre as quais é impossível decidir, é o motivo céptico clássico. O que importa compreender no motivo céptico é o seu inapelável compromisso com uma determinada ideia de realidade (no caso clássico, com a possibilidade de distinção entre realidade e aparência). Nesse compromisso decide-se a prioridade e poder que se concede ao pensamento na concepção geral de realidade.
O cepticismo clássico, grego, constitui-se em torno da procura de um critério de verdade. Os cépticos chegam à conclusão de que esse critério não existe e que portanto não é possível sustentar crenças racionais acerca da verdadeira realidade. Como outras escolas filosóficas helenísticas, o cepticismo clássico era mais propriamente uma filosofia de vida, uma ética, do que uma investigação cognitiva sistemática. Precisamente, o cepticismo clássico conduzia à abdicação da investigação cognitiva, por tomar como prioridade a procura da felicidade (que os cépticos definem, de modo semelhante aos estóicos e epicuristas, como 'apatia' - ausência de paixões - ou 'ataraxia' - imperturbabilidade). De facto, dada a inexistência de critério de verdade, a investigação cognitiva constitui um obstáculo para essa felicidade, ao ser fonte de perturbação.
Nos Esboços Pirronistas, o céptico Sexto Empírico define o cepticismo como uma habilidade mental (e não uma doutrina) pela qual devido à equivalência das razões opostas numa controvérsia se atinge um estado de suspensão mental (epochê), que é um estado de não pronunciamento, e em seguida a um estado de imperturbabilidade ou quietude (apatia ou ataraxia) identificável com a felicidade (eudaimonia). Este cepticismo é assim uma técnica para um ideal de vida. Supostamente o (actual) céptico lançara-se, como outros, na procura da verdade, identificada com 'a realidade por detrás das aparências', nada encontrando. A proposta céptica era então que isso que se procura só se encontra quando se deixa de procurar (esta ideia era ilustrada pela história do pintor Apeles que queria pintar a espuma na boca do cavalo e que, desesperado por não conseguir fazê-lo, atira com a esponja, conseguindo assim finalmente o efeito pretendido).
O que importa aqui sublinhar é o facto de o cepticismo clássico estar comprometido com uma distinção aparência/realidade que é ela própria problemática. A estratégia céptica clássica era justificada pelo facto de as aparências serem relativas, e pelo facto de ser impossível decidir fundamentadamente, entre aparências contraditórias, qual delas corresponderia à verdadeira realidade. Daqui os cépticos concluíam que não se conhece. No entanto, poder-se-ia igualmente questionar o sentido da ideia de 'verdadeira realidade' por detrás das aparências. Sem esta ideia, o movimento céptico de abdicação do inquérito deixa de parecer correcto.

Solipsismo e Cepticismos.
Se eu achar que posso ser céptico ao ponto duvidar de tudo o que está fora da minha mente, retendo agora apenas as aparências para mim, obtidas pelo meu acesso directo ao interior da minha mente, e deixando de lado o aspecto dialéctico da oposição de aparências para diferentes sujeitos característico do cepticismo clássico, chegarei à posição solipsista. O solipsismo corresponde à crença segundo a qual eu sou o único sujeito de experiências. Em tudo o que existe, só há um lugar de pensamento ('aqui') e só há um pensamento, o meu. Pode até ser que nada exista de exterior ao meu pensamento. Assim, reduzindo os meus compromissos cognitivos àquilo de que posso estar absolutamente seguro, verifico que fico apenas com o que acontece no meu pensamento no momento presente.
O solipsismo envolve assim o cepticismo acerca do mundo externo. Este consiste na contestação da possibilidade de justificação de crenças acerca do que quer que seja de exterior ao meu pensamento. Percepção e ciência - os dois principais sentidos em que se fala de "conhecimento do mundo real externo ao meu pensamento" - são igualmente vulneráveis a este tipo de cepticismo, pois em ambos os casos estão envolvidas afirmações acerca do mundo exterior.
O solipsismo envolve ainda o cepticismo acerca de tudo o que não seja o momento presente do pensamento, e portanto, se for consequente, será um cepticismo acerca do passado. O filósofo inglês B. Russell (1872-1970) imaginou o seguinte caso para exemplificar esse tipo de cepticismo: o mundo poderia ter começado a existir há 5 minutos, com pessoas cheias de memórias ilusórias acerca do seu próprio passado e da história da humanidade, pessoas para quem o passado 'existe ilusoriamente'. Como poderíamos justificar a implausibilidade dessa ideia? Do ponto de vista do solipsista, nunca poderíamos fazê-lo.
Outra consequência da restrição dos meus compromissos cognitivos ao momento presente do acontecer do meu pensamento é o cepticismo acerca das outras mentes. Podemos duvidar da existência de outras mentes: afinal só temos acesso directo à nossa própria mente, e será sempre assim, durante toda a nossa vida. Uma vez iniciado o caminho céptico, parece difícil alguma vez dele sair. A justificação de tudo aquilo em que cremos parece frágil.
Deve haver alguma coisa de errado com o cepticismo nas suas várias formas. Talvez possamos encarar a questão da seguinte forma: o que está errado no cepticismo tem possivelmente mais a ver com os compromissos ontológicos e epistemológicos que uma posição céptica assume do que propriamente com o imperativo metodológico do cepticismo (o filósofo empirista escocês David Hume afirmou que o cepticismo como método é o único estado possível de uma vida racional saudável). É conveniente portanto distinguir o cepticismo como assunção do carácter falível e provisório das nossas crenças (se as crenças não fossem falíveis, provisórias e substituíveis não faria por exemplo sentido a intenção de conhecer mais e melhor) do cepticismo como dúvida acerca da realidade e do conhecimento do mundo exterior, do passado e das outras mentes.
Tomando o caso do cepticismo acerca da realidade do mundo exterior, é possível argumentar que ele é sintomático de uma megalomania da razão e de uma confiança exagerada no nosso próprio domínio racional sobre as nossas crenças. Ora, as nossas crenças não estão tão submetidas à nossa vontade como o céptico acerca do mundo exterior pretende fazer crer. Talvez seja mesmo impossível acreditar genuinamente que o mundo real exterior não existe, exactamente pela razão referida no início deste texto: as nossas crenças não são absolutamente explícitas, racionais e justificadas (nem, acrescente-se, voluntárias: não podemos decidir crer que p e passar a crer que p!). Talvez se esteja a conceder um poder desmesurado ao pensamento racional ao atribuir-lhe como tarefa a fundamentação (i.e. a sustentação através de razões e provas, controladas e explícitas, a qual pode não ser conseguida) da crença na existência do mundo real exterior. Hume defendeu uma ideia semelhante: pode dar-se o caso de a nossa crença no mundo real exterior ser função da nossa imaginação, do funcionamento cognitivo normal da nossa mente, mas não fundamentada racionalmente nem submetida à nossa vontade de um modo tal que possamos suspendê-la.
O céptico está também a afirmar demais quando assume simplesmente a possibilidade de comparar uma perspectiva verdadeira com uma perspectiva ilusória sobre a realidade. Como foi dito, essa comparação envolve uma alternância entre 'estar dentro da mente a observar aparências' e 'estar fora da mente a observar a verdadeira realidade'. Esta alternância não parece possível (pelo menos sem deixarmos de existir...). É claro que negar totalmente a possibilidade de comparação redunda em algum tipo de verificacionismo, com os respectivos riscos idealistas.

Outras mentes.
As razões que conduzem ao cepticismo acerca das outras mentes são importantes para a filosofia da mente em geral. Se eu perguntar a mim próprio O que é que eu sei da outra pessoa e como é que eu sei aquilo que sei? verificarei que só tenho acesso (acesso indirecto, de acordo com o que foi dito atrás) a um corpo e a um comportamento, inclusivamente verbal - o qual é, de resto, especialmente importante em todo o processo - desse corpo. Posso ter acesso ao interior físico do corpo do outro, abri-lo de várias maneiras, mas nunca à sua interioridade mental, supostamente idêntica à minha. Mesmo numa operação ao cérebro de outra pessoa não se encontram 'seres mentais' da sua interioridade, tais como pensamentos e sentimentos, os quais no entanto eu lhe atribuo, pelo menos se lido com ela como pessoa. Entidades desse tipo só as encontro em mim, pelo meu acesso directo à minha mente.
Os filósofos chamam qualia às qualidades da experiência subjectiva, às qualidades fenoménicas tal como são experienciadas, ao facto de a vida mental ser sentida. Ora, parte do que estou a pretender fazer notar é que só existem qualia em primeira pessoa. Isso coloca vários problemas. Por exemplo, duas pessoas podem ter o mesmo vocabulário para cores e discriminar cores da mesma maneira (i.e. elas chamarão 'vermelhas' e 'verdes' às mesmas coisas nas mesmas ocasiões) e no entanto desde sempre terem visto cores invertidas, por exemplo vermelho por verde e verde por vermelho. Nesse caso, nunca se saberia.
Por outro lado, se uma pessoa tivesse um comportamento absolutamente indistinguível do de todas as outras pessoas, ela poderia ser totalmente desprovida de qualia sem que isso alguma vez se descobrisse. O primeiro caso é conhecido como o problema do espectro invertido, o segundo é o problema do zombie. A ideia de zombie é muito utilizada na filosofia da mente contemporânea, sobretudo para lidar com a questão da natureza da consciência, mas ela não é nova: por exemplo a teoria cartesiana do animal-máquina supõe precisamente que podem existir seres capazes de comportamento complexo que são totalmente desprovidos de consciência e sensiência. Descartes pensou assim acerca dos animais não humanos por ter ligado estreitamente todo o pensamento (mesmo o 'sentir') à consciência, e a consciência à alma. E Descartes não queria atribuir alma aos animais.
A ideia básica do problema das outras mentes é, como se vê, que apenas num caso (o meu) eu tenho acesso directo à correlação entre corpo, comportamento e qualia. A crença na interioridade mental de outros seres resulta sempre de uma inferência, que pode ser inválida, não fundamentada. Não resulta nunca de um acesso directo. Torna-se então problemático saber onde mais existe consciência, além da minha. Será que por exemplo, ao contrário do que pensou Descartes, ela existe em animais? Mas em quais? Se há casos em que parece simples admitir que existe consciência, como nos casos de cães e macacos, há casos em que admitir a existência de consciência parece estranho, como os casos de aranhas, moscas, ou seres unicelulares. Entre uns e outros, em que ponto 'entrará' em cena a consciência? E ela entrará em cena subitamente ou gradualmente? Por outro lado, porque se há-de restringir a atribuição de consciência a seres biológicos? Se a consciência é, pelo menos em nós, fisica e biologicamente baseada (como facilmente se comprova pondo alguém inconsciente dando-lhe uma enorme pancada na cabeça) não será possível a existência de consciência e do correspondente sentimento de si com outras bases físicas, por exemplo em máquinas computacionais complexas?
A atribuição de consciência pode pecar por excesso e por defeito e muitos debates em filosofia da mente e em ética dependem precisamente da diferença de opiniões entre as pessoas quanto ao que constitui excesso e defeito na atribuição da consciência. Pensar que a inteligência consciente é um apanágio exclusivamente humano é uma espécie de chauvinismo (a espécie de chauvinismo a que alguns chamam speciesism...), e podemos ter perante essa posição a mesma indignação que hoje muitas pessoas sentem em relação à diferença estabelecida por Descartes entre humanos e animais, quando afirmou que só há consciência onde há alma, e só há alma onde há humanos. No extremo oposto desta restrição da consciência ao humano está o pampsiquismo, a posição segundo a qual todas as partes da matéria implicam ou podem implicar consciência. O pampsiquismo não tem que ser uma ideia imediatamente absurda: em versões contemporâneas ele é identificável com a defesa da ideia segundo a qual os constituintes físicos básicos do universo têm propriedades mentais, sejam ou não parte de organismos vivos. Um pampsiquismo assim é um materialismo, não reducionista, realista, correspondente à não aceitação da ideia de emergência. É uma posição que pode ajudar a conceber o aparecimento da consciência no universo, mas que é evidentemente muito perturbadora no que respeita à identidade pessoal, que é supostamente uma e una. O filósofo G. Leibniz (1846-1716), na Monadologia, apresentou também uma hipótese pampsiquista, embora não materialista.

O problema mente-corpo.
Não é apenas a distribuição de consciência por outras partes do mundo que não o eu e por outras mentes que não a minha que é complexa. Mesmo em mim essa 'distribuição' é difícil de conceber. Como foi dito, é à minha mente que eu tenho acesso directo, e não aos fenómenos físicos que a possibilitam, nomeadamente aos eventos neuronais no meu cérebro. Eu posso saber a partir de fora, do ponto de vista da objectividade científica, o ponto de vista de terceira pessoa, que esses eventos físicos são responsáveis pelo meu pensamento, por exemplo estudando neuroanatomia e neurofisiologia, mas não tenho acesso directo a eles, nem tenho deles qualquer conhecimento incorrigível. Esta situação assimétrica constitui o problema mente-corpo (por vezes também chamado problema mente-cérebro, uma vez que o cérebro é a parte do corpo mais directamente envolvida, pelo menos nos humanos, com a existência de consciência e pensamento).
O dualismo cartesiano é um exemplo de posição perante este problema, afirmando a existência de duas substâncias de natureza irredutível, a consciência e a matéria. O monismo espinosista é outra possibilidade: Espinosa (1632-1677) defendeu que o pensamento e a matéria são dois modos dos modos infinitos da uma mesma substância única, Deus.
Contemporaneamente, pode-se considerar que a discussão do problema mente-corpo parte do seguinte ponto comum: o que acontece na consciência depende do que acontece no corpo e nomeadamente no cérebro. Isso é tomado como certo. O problema é saber se a mente consciente é o cérebro ou é diferente dele, pois o facto é que nós temos consciência do que acontece na mente, e não temos consciência do cérebro ou do que nele acontece (aliás, nunca sequer o vimos).
A conclusão mínima possível é que a interioridade mental e a interioridade física são diferentes, e que precisamos de conceber a interioridade mental para pensarmos o pensamento. Podemos fazê-lo pensando que existe uma alma 'ligada' ao corpo e que portanto nós somos duas coisas, ou pensando que os estados mentais são estados cerebrais. Neste último caso, seremos fisicalistas, e este é o ponto de partida da maioria dos filósofos da mente contemporâneos. No entanto, é possível argumentar, como faz por exemplo T. Nagel, que o fisicalismo é uma concepção incompleta de realidade, na medida em que considera a realidade como se esta fosse puro exterior, o que não é o caso. Por isso Nagel, que não admite a existência de uma alma, defende uma teoria do aspecto dual, i.e. defende que o cérebro não é apenas um sistema físico mas um sistema com aspectos físicos e mentais, nomeadamente a consciência. Este duplo aspecto da realidade não é, segundo Nagel, uma característica local, mas presumivelmente uma característica inerente aos constituintes gerais do universo e às leis que os governam. Assim, segundo Nagel, não é possível uma teoria puramente física da consciência. No entanto, a falsidade do fisicalismo não requer a admissão de substâncias não físicas, por exemplo almas cartesianas, mas apenas que a ideia de que aquilo que é verdadeiro acerca de seres conscientes não é redutível a termos físicos.
 
Sofia Miguens in aeflup.com