Cultura e relativismo

A vida humana é convivência, é um "conviver". Se uma sociedade sem indivíduos e relações interindividuais é uma ficção o mesmo poderemos dizer do indivíduo humano isolado. Robinson Crusoé, perdido numa ilha deserta, devido a um naufrágio, manifesta no seu comportamento a presença de técnicas, atitudes, habilidades e crenças que aprendeu na sua convivência social, isto é, fisicamente separado de qualquer sociedade continua a "conviver" com ela desejando regressar ao convívio efectivo. Embora não devamos considerar o ser humano como o simples resultado da educação e da socialização, é inegável que, por definição, o homem é um ser a educar, a introduzir num determinado contexto cultural.
"Educar" é um termo que vem do latim e-duce que significa conduzir para fora de, fazer sair de ... A bagagem biológica que herdámos ao nascer, o nosso equipamento natural ou biológico é insuficiente para que nos tornemos seres aptos a desempenhos e atitudes especificamente humanos.
A cultura é o conjunto de valores, normas, ideias, crenças, conhecimentos, instrumentos técnicos, instituições, produções artísticas, costumes, etc., que os homens, vivendo numa sociedade determinada e em relação ou não com outras, criaram ao longo da história. É no seio de uma dada cultura que nos formamos como homens participando e assimilando diversos conteúdos culturais que condicionarão a nossa forma de viver. Por outro lado, é, normalmente, no interior da cultura que nos formou que contribuímos para o seu desenvolvimento e modificação, dado que o indivíduo humano é simultaneamente capacidade de assimilação ("filho do seu tempo") e criatividade. A cultura não é algo estático: os conteúdos culturais acima referidos são o fruto de um "cultivo" levado a cabo por indivíduos que não se limitam a receber o que lhes é dado pela sociedade, mas também possuem a capacidade de dar.
A cultura será assim a actividade formativa do ser humano, o exercício e aperfeiçoamento de faculdades humanas. Permite a aquisição de conhecimentos e capacidades que permitem a compreensão de certas formas de agir, sentir e pensar. Torna possível a integração social, a construção de uma personalidade própria, o respeito por outras culturas, a contestação de aspectos daquela em que fomos educados, etc.


1.Diversidade cultural, etnocentrismo e relativismo

É norma socialmente reconhecida entre nós que devemos cuidar dos nossos pais e de familiares quando atingem uma idade avançada; os Esquimós deixam-nos morrer de fome e de frio Nessas mesmas condições. Algumas culturas permitem práticas homossexuais enquanto outras as condenam (pena de morte na Arábia Saudita). Em vários países muçulmanos a poligamia é uma prática normal, ao passo que nas sociedades cristãs ela é vista como imoral e ilegal.
Certas tribos da Nova Guiné consideram que roubar é moralmente correcto; a maior parte das sociedades condenam esse acto. O infanticídio é moralmente repelente para a maior parte das culturas, mas algumas ainda o praticam. Em certos países a pena de morte vigora, ao passo que noutras foi abolida; algumas tribos do deserto consideravam um dever sagrado matar após terríveis torturas um membro qualquer da tribo a que pertenciam os assassinos de um dos seus.
Centenas de páginas seriam insuficientes para documentarmos a relatividade dos padrões culturais, a grande diversidade de normas e práticas culturais que existem actualmente e também as que existiram.
Até há bem pouco tempo muitas culturas e sociedades viviam praticamente fechadas sobre si mesmas, desconhecendo-se mutuamente e desenvolvendo bizarras crenças acerca das outras.
Os europeus que viajaram para as Américas no século XVI acreditavam que iam encontrar gigantes, amazonas e pigmeus, a Fonte da Eterna Juventude, mulheres cujos corpos nunca envelheciam e homens que 'viviam centenas de anos. Os índios americanos foram inicialmente olhados como criaturas selvagens que tinham mais afinidades com os animais do que com os seres humanos. Paracelso, nunca lá tendo ido, descreveu o continente norte-americano povoado por criaturas que eram meio homens meio bestas. Julgava-se que os índios, os nativos desse continente, eram seres sem alma nascidos espontaneamente das profundezas da terra. O bispo de Santa Marta, na Colômbia, descrevia os indígenas como homens selvagens das florestas e não homens dotados de uma alma racional, motivo pelo qual não podiam assimilar nenhuma doutrina cristã, nenhum ensinamento, nem adquirir a virtude.
Anthony Giddens, Sociology, Polity Press, Cambridge, p. 30

Durante o século XIX os missionários cristãos em África e nas ilhas do Pacífico forçaram várias tribos nativas a mudar os seus padrões de comportamento. Chocados com a nudez pública, a poligamia e o trabalho no dia do Senhor, decidiram, paternalistas, reformar o modo de vida dos "pagãos". Proibiram os homens de ter mais de uma mulher, instituíram o sábado como dia de descanso e vestiram toda a gente. Estas alterações culturais, impostas a pessoas que dificilmente compreendiam a nova religião, mas que tinham de se submeter ao poder do homem branco, revelaram-se, em muitos casos, nocivas: criaram mal-estar social, desespero entre as mulheres e orfandade entre as crianças.
Se bem que o complexo de superioridade cultural não fosse um exclusivo dos Europeus (os chineses do século XVIII consideraram desinteressantes e bárbaros os seus visitantes ingleses), o domínio tecnológico, científico e militar da Europa, bem vincado a partir das Descobertas, fez com que os Europeus julgassem os próprios padrões, valores e realizações culturais como superiores. Povos pertencentes a sociedades diferentes foram, na sua grande maioria, desqualificados como inferiores, bárbaros e selvagens.
O etnocentrismo é a atitude característica de quem só reconhece legitimidade e validade às normas e valores vigentes na sua cultura ou sociedade. Tem a sua origem na tendência de julgarmos as realizações culturais de outros povos a partir dos nossos próprios padrões culturais, pelo que não é de admirar que consideremos o nosso modo de vida como preferível e superior a todos os outros. Os valores da sociedade a que pertencemos são, na atitude etnocêntrica, declarados como valores universalizáveis, aplicáveis a todos os homens, ou seja, dada a sua "superioridade" devem ser seguidos por todas as outras sociedades e culturas.
Adoptando esta perspectiva, não é de estranhar que alguns povos tendam a intitular-se os únicos legítimos e verdadeiros representantes da espécie humana. Quais os perigos da atitude etnocêntrica? A negação da diversidade cultural humana (como se uma só cor fosse preferível ao arco-íris) e, sobretudo os crimes, massacres e extermínios que a conjugação dessa atitude ilegítima com ambições económicas provocou ao longo da História.
Depois da Segunda Guerra Mundial e do extermínio de milhões de indivíduos pertencentes a povos que pretensos representantes de valores culturais superiores definiram como sub-humanos, a antropologia cultural promoveu a abertura das mentalidades, a compreensão e o respeito pelas normas e valores das outras culturas.
Mensagens fundamentais:
a) Em todas as culturas encontramos valores positivos e valores negativos;
b) Se certas normas e práticas nos parecem absurdas devemos procurar o seu sentido integrando-as na totalidade cultural sem a qual são incompreensíveis; c) O conhecimento metódico e descomplexado de culturas diferentes da nossa permite-nos compreender o que há de arbitrário nalguns dos nossos costumes, torna legítimo optar, por exemplo, por orientações religiosas que não aquelas em que fomos educados, questionar determinados valores vigentes, propor novos critérios de valoração das relações sociais, com a natureza, etc.
A defesa legítima da diversidade cultural ' conduziu, contudo, muitos antropólogos actuais a exagerarem a diversidade das culturas e das socíedades: não existiriam valores universais ou normas de comportamentos válidos independentemente do tempo e do espaço. As valorações são relativas a um determinado contexto cultural, pelo que julgar as práticas de uma certa sociedade, não existindo escala de valores universalmente aceite, seria avaliá-los em função dos valores que vigoram na nossa cultura.
Cairíamos de novo, segundo a maioria dos antropólogos, nessa atitude dogmática que é o etnocentrismo.

2.O Relativismo Moral

O relativismo moral é uma forma específica e particular de expressão do relativismo cultural. Segundo aquele não há normas morais universalmente válidas, sendo a validade de cada norma relativa à sociedade e à cultura que a impõe. 
O relativismo moral é a doutrina segundo a qual a moralidade e a imoralidade das acções variam de sociedade para sociedade, não havendo, assim, normas morais absolutas obrigando igualmente todos os homens, ou seja, que devam ser seguidas por todos onde quer que vivam. Por conseguinte, o relativismo moral sustenta que avaliar se é moralmente correcto um indivíduo agir de um certo modo depende ou é relativo à sociedade a que pertence.
John Ladd, Ethical relativism, Wadsworth Publishing Company, Belmont, California, p. 25

Os partidários do relativismo moral, da convencional idade das normas morais, argumentam que esta doutrina promove e estimula a tolerância entre os seres humanos. O argumento é, aproximadamente, o seguinte:
a) As normas morais são relativas à cultura e à sociedade que as institui;
b) Uma vez que não há normas morais absolutas ou universalmente aceites, não possuímos qualquer base objectiva para criticar a moralidade desta ou daquela cultura;
c) logo, devemos ser tolerantes com as práticas morais reconhecidas como válidas por outras sociedades e culturas.
Na perspectiva relativista basta uma sociedade instituir como "normal" um certo conjunto de práticas para que tenhamos de as respeitar porque é intolerante e ilegítimo julgar tradições e normas de comportamento que nos são culturalmente estranhas. Secada colectividade ou, melhor dizendo, se cada comunidade se define pelos valores e normas que a identificam (que lhe são próprios) e não existem valores e normas válidos para toda a humanidade, como condenar actos objectivamente repulsivos e bárbaros? Como defender os indivíduos de sociedades diferentes da nossa da prepotência dos seus governos, da tortura?
Se condeno a excisão, praticada em vários países africanos e na Europa, aceitarei que me digam que a minha indignação é sinal de intolerância e de incompreensão dos valores de dada cultura?
O relativismo moral revela-se igualmente problemático quando analisamos no interior de uma dada sociedade a relação dos indivíduos com as normas em vigor.
Apesar da opressão e das severas limitações à liberdade de expressão, mulheres e homens manifestam-se contra a excisão denunciando-a como prática que mutila o corpo e põe em risco a vida de quem a sofre; na Arábia Saudita e em outros países muçulmanos há, sob forma clandestina ou semiclandestina, movimentos de protesto contra o estatuto subalterno das mulheres. Não significa essa revolta que há valores ou normas morais que ultrapassam os limites de toda e qualquer cultura (valores universais ou transculturais) e em nome dos quais criticamos, formulamos juízos morais, reivindicamos, etc.?
O relativismo moral argumenta que ninguém pode legitimamente dizer que certas práticas de determinadas culturas e sociedades são moralmente reprováveis porque, na sua perspectiva, não há princípios morais objectivos a partir dos quais pudéssemos julgar imparcialmente. Em si mesmas, não há normas e práticas moralmente correctas e moralmente incorrectas e nenhuma cultura tem o direito de se arvorar em juiz de outra. Há, contudo, objecções a fazer.
Não teremos o direito de acreditar que as nossas normas e práticas morais são melhores - embora não haja certezas quanto a isso - do que as de outras culturas? Será impossível que uma cultura tenha percepções morais - sobre o bem e sobre o mal – condenáveis?
in lrsr1.blogspot.pt