A fundação da esfera política - por Hannah Arendt

“[Em Aristóteles] a própria ideia de governação, assim como a distinção entre governantes e governados, é algo que pertence a um domínio que precede a esfera política, e aquilo que distingue esta última do domínio “económico” da família é que a polis se baseia num princípio de igualdade e desconhece qualquer diferenciação entre governantes e governados.
Nesta distinção entre o que hoje chamaríamos a esfera privada e pública, Aristóteles limita-se a verbalizar uma opinião corrente entre os gregos, segundo a qual «cada cidadão pertence a duas ordens da existência», já que “a polis dá a cada indivíduo […] para além da sua vida privada, uma espécie de segunda vida, a sua bio politikos (o ùltimo Aristóteles chamou-lhe a “boa vida”…). Ambas as ordens constituíam formas de viver em conjunto, mas só a comunidade familiar é que se ocupava da continuidade da vida enquanto tal e tratava das necessidades físicas relacionadas com a preservação da vida individual e a garantia da sobrevivência da espécie. Em notória oposição à abordagem moderna, o tratar da preservação da vida, tanto individual como da espécie, pertencia exclusivamente à esfera privada da família, enquanto que na polis o homem era visto como (…) personalidade individual, diríamos nós actualmente. Enquanto seres vivos, preocupados com a preservação da vida, os homens são confrontados com a necessidade e por ela conduzidos. A necessidade deve ser domada antes de se dar início à “boa vida” da esfera política (…). Assim, a liberdade da “vida boa” assenta na dominação da necessidade.
O domar da necessidade tem pois como objectivo o controlo das necessidades vitais que coarctam os homens e os mantêm sobre o seu poder. Mas tal dominação só pode ser obtida através do controlo e da violência exercida sobre os demais, que na qualidade de escravos aliviam os homens livres da coerção da necessidade. O homem livre, o cidadão de uma polis, não é constrangido pelas necessidades físicas da vida nem sujeito à dominação instituída por outros homens. É necessário que ele não seja um escravo; mas isso não basta, é preciso que seja também proprietário de escravos, que impere sobre eles. A liberdade da esfera política começa depois de todas as necessidades elementares da pura sobrevivência terem sido domadas através de um processo de governação; de forma que, se a dominação e a sujeição, o comando e a obediência, o governar e o seu governado são condições prévias á fundação da esfera política, isso deve-se precisamente ao facto de não constituírem o seu conteúdo”.
Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro, Oito Exercícios sobre o pensamento Político, Relógio de Água, p. 130