Ciência e probabilidade - problematização

(…) A propensão (inata?) de acreditarmos num mundo regido por leis, regularidades inalteradas (…), por uma ordem, tem (…) origem “teológica, mágica e política”. “A ordem do universo é um conceito derivado da crença religiosa na racionalidade de Deus que pôs em movimento um universo perfeito para demonstrar a sua omnisciência”. Origem política, também, segundo E. Morin, associada à origem divina das monarquias ocidentais. Com a mutação verificada no pensamento científico nos séculos XVIII e XIX, a ordem sobrevive e reforça-se com o relativo apagamento da intervenção divina (ordem e progresso, lema do positivismo e do cientismo). (…)
Ora enquanto a ordem é o que permite a previsão rigorosa, o controlo, a desordem é o que conduz à angústia da incerteza face ao não controlável. A resistência à desordem assume um carácter metafísico e um carácter moral, segundo E. Morin que nos diz (…) que um mundo totalmente aleatório é desprovido de organização e impossível para seres vivos, mas que um mundo totalmente determinista seria desprovido de inovação e de evolução. As probabilidades e a estatística mantêm, ao nível dos grandes números, um certo tipo de ordem. Ao nível quântico e ao nível do acontecimento isolado a realidade parece continuar a ultrapassar a capacidade do nosso conhecimento e entendimento.
Parece ser possível concluir que existe uma crença generalizada entre os cientistas, os engenheiros, os economistas e os filósofos do conhecimento: o conhecimento de probabilidades diminui o grau de incerteza. Frank Knight (1921) distingue claramente a incerteza sem possibilidade de serem estimadas probabilidades (incerteza completa), da incerteza quantificada através de probabilidades (risco). A função principal do conhecimento das probabilidades de fenómenos macroscópicos é a sustentação de decisões e uma forma de integrar racionalmente informações e evidências. Ora estas decisões são tomadas, a diversos níveis, com informações e justificações de tipo “objectivo” ou com crenças “subjectivas”. (…) Para terminar, fica-nos a reflexão sobre o que é possível ou impossível no nosso mundo, na nossa vida: “…mesmo os processos mais improváveis ocorrerão algum dia”…”a maior das improbabilidades sempre continua a ser uma probabilidade”. (Popper, 2002, p. 22); algumas coisas jamais ocorrem no mundo físico porque são impossíveis, outras, porque são demasiado improváveis”(…).
Do levantamento efectuado, pode-se concluir que, seja qual for a melhor interpretação aplicável à mecânica quântica os resultados neste domínio da Física são um sucesso prático e que, no domínio macroscópico, a interpretação intersubjectiva é muito válida. Com efeito, admitindo uma estrutura axiomática formal e regras de cálculo matemático e incorporando os conhecimentos convictos subjectivos resulta uma metodologia de suporte à decisão que, colectivamente, pode ser adoptada se o grupo de actores intervenientes entender que seja útil. A ponderação de perdas ou ganhos sob a forma de valores expectáveis permite a consideração de decisões racionais que podem ser fundamentais na dinâmica da sociedade.
Para além das abordagens relativas aos significados no contexto dos domínios microscópicos (mecânica quântica) e macroscópico (aplicações práticas correntes do cálculo das probabilidades e análises frequenciais e lógicas) pode (e deve) considerar-se uma outra vertente: a vertente psicológica e o sentido da probabilidade no comportamento humano nomeadamente na relação pensamento-realidade. A probabilidade, neste contexto, seria também uma manifestação psicológica intrínseca, uma capacidade inata e cumulativa de experiências para defesa e avanço no futuro. O estudo da percepção de frequência e das intuições baseadas em evidências, conscientes e não conscientes, é um aspecto importante, nomeadamente na filosofia do risco. O desenvolvimento da probabilidade numérica, de acordo com a história, teria tido, assim, uma justificação consistente com a alteração da relação psicológica entre um mundo de ordem divina e um mundo entregue à razão humana.
 
(adaptado) A. BETÂMIO DE ALMEIDA in O PROBLEMA EPISTEMOLÓGICO DA PROBABILIDADE E A CONTRIBUIÇÃO DE KARL POPPER PARA O RESPECTIVO DEBATE