O Princípio de Responsabilidade - uma perspectiva ética sobre a natureza na civilização tecnológica - por Bruno Rego

A ciência e a técnica moderna têm permitido uma evolução sem precedentes no desenvolvimento das mais variadas esferas da vida da espécie humana neste planeta. Ao contrário de épocas anteriores, o homem actual foi e é ainda capaz de atingir as mais surpreendentes conquistas nos mais diversos âmbitos da realidade e, dessa forma, o seu poder e a sua capacidade de intervir na mesma crescem vertiginosamente. A ciência e a técnica traduzem-se em poder e domínio. Mas este poder comporta também um lado negativo e, se o exercício do mesmo não for equacionado e aplicado de uma forma realista, segundo Hans Jonas, pensador alemão do século XX (1903-1993), ele pode tornar-se destrutivo para a própria humanidade enquanto espécie. É aqui que surge a necessidade de reavaliar os pressupostos da ética que até agora guiou a acção humana desde a modernidade até aos dias de hoje. Mas porquê a necessidade de uma nova ética, ou, pelo menos, da introdução de um princípio de responsabilidade na mesma? O que é que a ciência e a técnica modernas colocaram definitivamente em perigo? O homem e a própria natureza? Nos próximos parágrafos procuraremos fornecer alguns tópicos de reflexão sobre estas questões.
Para Hans Jonas, é evidente não só a necessidade, mas também a urgência de tentar procurar novos princípios éticos que reconfigurem, por assim dizer, a relação do homem co a natureza. Porque dela poderá depender no futuro a sobrevivência da espécie humana como a conhecemos. É este o alcance e a gravidade que atingem o repto lançado por Jonas, como é possível vermos numa passagem de O Princípio de Responsabilidade:
"… o que aqui está implicado não é só o destino do homem, mas também o conceito que dele possuímos, não apenas a sua sobrevivência física, mas também a integridade da sua essência…" (Hans Jonas, Principio de Responsabilidade – Ensayo de una ética para la civilización tecnológica, pág. 16).
A ciência e a técnica, pela magnitude das suas implicações, têm a capacidade de provocar uma possível desfiguração da essência humana, que afecta o equilíbrio, e mesmo a própria sustentabilidade das condições de vida no planeta Terra. Jonas insiste bastante nesta questão ao longo da sua obra e parte dela para tentar fundamentar a exigência de novos princípios éticos que lhe sirvam de contraponto e que permitam reverter essa situação, como iremos ver. A ética erigida ao longo da modernidade, por si só, torna-se insuficiente face aos desafios e problemas com que se debate a nossa época histórica, porque os seus princípios não contemplam algumas das esferas que a acção humana entretanto foi submetendo ao seu domínio e incorporando no seu horizonte vital. As descobertas e conquistas, motivadas pela ciência e pela tecnologia ao longo dos tempos, colocaram novos dilemas à actuação do ser humano, que se tornam imperiosos de uma profunda reflexão e também de uma nova legislação ética. Ou, ainda mais que isso, de uma nova perspectiva da posição do homem face ao cosmos que o rodeia. Para nos darmos conta desta nova perspectiva, há que tornar clara, ainda que de uma forma breve, aquilo a que poderíamos chamar a anterior relação do homem com o mundo, nomeadamente com a natureza, dado ser ela a principal implicada na concepção de Jonas.
A relação do homem com a natureza em épocas históricas anteriores surge-nos associada à ética e à forma como a ciência e a técnica eram encaradas. É este o princípio que Jonas segue na sua obra e que nós iremos seguir nesta breve exposição.
A concepção da antiguidade (nomeadamente na cultura grega), no que toca a esta questão, é de uma quase fundamental oposição ao que se passa nos nossos dias. Por maior que fosse a intervenção do ser humano no meio natural, ele não produz uma alteração visível ou mesmo sequer se coloca a possibilidade de esgotamento dos recursos que a natureza oferece. A vida humana não hostiliza o meio natural. Como afirma Jonas:
"…as intervenções do homem na natureza […] eram essencialmente superficiais e incapazes de causar danos ao seu permanente equilíbrio" (Hans Jonas, op.cit., pág. 27).
A própria natureza, entendida como biosfera, não está inserida nas preocupações éticas dos gregos, ou seja, não há um conceito que determine uma relação de responsabilidade – que deverá ser o motor da ética actual segundo Jonas – do homem para com o meio natural. O elemento primordial do homem é a pólis, a cidade-estado, na qual o ser humano desenvolve toda a sua actividade, nomeadamente ética e política, actividades que atestam a busca da excelência humana. A relação privilegiada é do homem para com os outros homens, e não do homem para com a natureza. É dentro da pólis, o seu mundo «natural», que o homem se esforça por encontrar um equilíbrio e uma harmonia semelhantes à ordenação existente nos diversos elementos que compõem o universo que o rodeia. A ética é marcada pelo antropocentrismo.
Este antropocentrismo é ainda mais vincado na ética e na cosmovisão implantada pelo cristianismo, onde o ser humano surge como o expoente máximo da criação divina e o seu ser, na sua essência, totalmente desenraizado do meio natural. O homem, como obra mais perfeita do mundo criado por Deus, tem a possibilidade de intervir como bem entende na natureza, relegada para segundo plano na ordem de existência das coisas. Contudo, a sua intervenção não conduz ainda à desestabilização do equilíbrio ambiental. A ciência e a técnica progridem lentamente, mas não colocam ainda em perigo a vida do ser humano no planeta. Embora na opinião de alguns autores, como por exemplo o historiador francês Jean Gimpel (na sua obra A Revolução Industrial na Idade Média), se deva colocar os séculos XI-XIII como o início da primeira revolução industrial com os seus consequentes problemas ambientais. Mas estes não foram susceptíveis de comprometer o equilíbrio natural. À semelhança dos Gregos, o paradigma ético cristão privilegia a relação do homem com o homem como meta para a felicidade suprema. O meio natural é corruptível, sujeito a mudanças, incompatível com a natureza humana, é uma centelha da luz divina, transcendente e com aspirações à eternidade.
A idade moderna, colocando a razão humana no topo da pirâmide paradigmática, com os incomensuráveis progressos científicos e tecnológicos que se lhe seguiram, legitimou uma nova visão da natureza. Esta é submetida a uma lógica de cálculo, previsão e domínio, confrontada com o poder esmagador das ambições científicas e tecnológicas do homem, incapaz de suster por muito mais tempo o seu equilíbrio. O homem actua sobre a natureza com uma voracidade selvagem, retirando dela tudo o que precisa para as suas realizações. A máxima de Francis Bacon (1561-1626) no Novum Organum, "Saber é poder", foi levada ao extremo e as conquistas científicas e tecnológicas representam o triunfo da humanidade, enquanto espécie, sob o meio natural. Contudo, os efeitos deste triunfo mostram-se adversos quer na vida do ser humano, quer na própria natureza. E é esta a principal diferença entre a nossa época e as épocas anteriores. Criador de um dinamismo tecnológico sem precedentes, como já anteriormente referimos, o homem começa a tornar-se cativo do mesmo, sendo já ele próprio presa e não agente, dominado e não protagonista, enfim, uma parte de um processo que o ultrapassa (este é um dos tópicos fundamentais da reflexão do filósofo Martin Heidegger sobre a técnica) e que, segundo Jonas, assume efeitos que podem ser irreversíveis.
Os efeitos estendem-se à própria natureza que, debilitada e atingida no seu âmago, vulnerável face à presença predadora do homem, não consegue acompanhar a violação que lhe é imposta e isso traduz-se numa cada vez maior escassez de recursos, no perecimento de ecossistemas e na extinção de espécies animais, como cenários possíveis de um trágico desenlace.
É perante este panorama que se confronta a reflexão de Hans Jonas e é a partir daqui que se deve equacionar a existência de novos princípios éticos que tenham em conta esta perspectiva de catástrofe imediata. De um lado a esfera humana, poderosa e predatória, do outro uma esfera, a natural, que é "…ensombrada por um crescente domínio de acção colectiva em que agente, acção e efeito já não são o que eram na esfera próxima e que, pela desmesura dos seus poderes, impõe à ética uma nova dimensão de responsabilidade nunca antes imaginada" (Hans Jonas, Ética, Medicina e Técnica, pag.37).
Em resumo, a natureza, até então nunca alvo de uma legislação ética, deve passar a constituir uma preocupação crescente nesse domínio e a responsabilidade ganha contornos de conceito ético fundamental e prioritário.
A nova ética, ou por outras palavras, a reconsideração de pontos fundamentais da ética até então predominante proposta por Jonas em o Princípio de Responsabilidade, reveste-se de características bastante peculiares. A começar por um imperativo sustentado pelo pensador:
"Que no futuro deva haver sempre um mundo tal – um mundo apto a que o homem o habite – e que no futuro este mundo deva ser sempre habitado por uma humanidade digna do seu nome, …" (Hans Jonas, op.cit, pag.38).
Nesta passagem encontramos uma das novidades da ética proposta por Jonas. Nunca antes uma teoria ética colocara em causa a existência de um mundo, ou seja, de um palco onde se desenrola a acção humana. Mas este cenário é agora senão previsível, pelo menos imaginável, face às implicações e consequências tanto presentes, como futuras, da tecnologia na era moderna. Uma outra diferença fundamental prende-se com a noção de futuro. Ao passo que as éticas anteriores sempre se regeram pelo presente imediato, a responsabilidade, vector da nova concepção ética, aponta principalmente para o futuro. E porquê? Em primeiro lugar, porque trabalha com cenários e previsões, a possibilidade da aniquilação total da vida devido aos efeitos nefastos da técnica, cujo impacto pode ser ou não real. Mas Jonas salienta que só assim é possível introduzir a noção de responsabilidade como princípio ético, ou seja, a reflexão ética deverá senão partir de uma pedagogia da catástrofe, ou como o nosso autor afirma, de uma "heurística do temor", pelo menos deverá tê-la em conta de sobremaneira. Não nos podemos esquecer em que cenário estamos. O de uma possível destruição da biosfera do planeta. Neste sentido, urge reequacionar a relação do ser humano com a natureza e torná-la um tema fundamental das discussões éticas do nosso tempo. A relação do ser humano com a natureza deverá pautar-se pelo respeito e pela humildade, em detrimento da arrogância, altivez e avidez desmesuradas presentes na visão e na forma como a ciência aborda o meio natural, por um repensar do modo de vida do ser humano no seio de uma sociedade altamente tecnológica e industrializada.
A acção humana deverá ser responsável e moderada, orientada ao futuro de uma forma racional, de modo a preservar às gerações vindouras um legado duradouro, isto é, um planeta habitável e apto a gerar as condições para a vida humana tal como o temos conhecido até hoje. Esta acção incide principalmente na actuação a nível político, onde se deverão definir metas compatíveis e ajustadas a um cada vez maior equilíbrio entre o mundo humano e o mundo natural, metas que tenham em conta não só o presente imediato, mas também um horizonte de longo prazo.
Um outro aspecto interessante do pensamento de Jonas neste campo é o abandono da das utopias que marcaram a modernidade. A utopia, aliada à fé num progresso inquebrantável e imparável, baseado nas conquistas científicas e tecnológicas conduziu à visão de domínio e triunfo do homem sobre a natureza. Deve proceder-se a uma crítica de toda a utopia que é, no fundo, proceder também a uma crítica da própria essência do fenómeno da técnica, uma vez que ambas estão intimamente associadas. Uma ética que pretende reequacionar as coordenadas da acção humana no mundo deverá prescindir totalmente da utopia, dado que esta é totalmente incompatível com a situação e perspectivas futuras da nossa época. Assim, os valores que deverão estar presentes, para além da responsabilidade que é o centro da na nova perspectiva ética, serão a prudência e a moderação para suster o ímpeto avassalador de malefícios que a técnica moderna está a desferir no coração do planeta. Para bem do futuro, da natureza e da relação desta para com o homem.
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