O problema do método científico

in evolucaoenergiaeolica.wordpress.com
«Os cientistas e os filósofos da Ciência descrevem a conduta da investigação científica em duas grandes correntes - o método indutivo e o sistema hipotético - dedutivo. […].
Regra geral, indução significa a discussão desde as circunstâncias particulares até às gerais; a dedução significa a discussão no sentido inverso. Embora possa, à partida, parecer que dedução e indução são igualmente válidas e rigorosas, visto que sobem e descem a mesma escada elas não o são. Só o raciocínio dedutivo pode ser desenvolvido de maneira rigorosa. […] Hoje em dia, já praticamente nin­guém acredita que o método indutivo seja rigoroso ou descreva o método científico. […] De acordo com o cenário indutivo, primeiro surgem os factos e depois, como faria um grande detective trabalhando com as suas pistas, os cientistas arquitec­tam uma grande teoria. […]
Aplicamos o método indutivo na nossa vida, todos os dias. Por exemplo, uma pessoa bebe um copo de leite numa terça e numa quinta-feira e, reflectindo sobre o assunto, lembra-se de que andou mal do estômago precisamente nesses dias. No sábado, esta mesma pessoa realiza uma experiência, bebendo um copo de lei­te, e, realmente, sente-se mal do estômago. A partir desta sequência de aconteci­mentos específicos, conclui então que o leite lhe perturba sempre o estômago. Da mesma forma, um físico experimental pode manter um dispositivo delicado para efectuar medições de energias, iniciais e finais, de um processo de colisão de par­tículas quânticas. De cada vez que o processo tem lugar, a energia final é igual à energia inicial, dentro dos limites do erro experimental. O cientista verifica o pro­cesso com outros exemplos e formula então o princípio geral de conservação de energia – mais uma vez uma argumentação que vai do particular para o geral. Será isto que os cientistas fazem – reunir os factos e depois formular conclusões gerais?
A resposta é um não definitivo – não na prática e não em princípio. Os cientis­tas, ao dedicarem-se a uma experiência, têm já algo em mente, um pensamento enquadrado, um conjunto de opções previstas do resultado futuro. Tal como a pessoa que, um dia, decidiu testar a sua reacção ao leite, os cientistas já têm hipó­teses formuladas quando se empenham na recolha de dados. E com isto, arruma­mos a prática do método indutivo. […]
Os cientistas começam por avançar uma hipótese imaginativa, uma conjectura esclarecida. 'Uma facilidade em formular hipóteses, dizia W. Whewell [investigador do século XIX com um conhecimento muito diversificado das ciências e autor do livro The Philosophy of the Inductive Sciences], 'em lugar de constituir defeito no carácter do descobridor, é […] uma qualidade indispensável ao desempenho da sua tarefa. Formular hipóteses e, depois, desperdiçar muito trabalho e talento a refutá-Ias, quando elas não vingam, é prática comum das mentes inventivas. […] Uma vez que o investigador tem de avançar constantemente no seu trabalho por meio de hipóteses, falsas e verdadeiras, é muito importante que disponha de talento e meios para verificar rapidamente cada hipótese, à medida que ela se apresenta.
Esta descrição do processo de descoberta não é a de um investigador inocente que recolhe factos como quem apanha conchas na praia para depois as separar. Mas é, de facto, uma descrição do verdadeiro procedimento que os cientistas cos­tumam usar: primeiro é formulada a hipótese, depois o aparelho crítico e rigoroso da experiência e da lógica surge em cena.
Whewell antecipou em mais de um século o sistema hipotético-dedutivo, que foi levado à sua formulação mais forte por Karl Popper. Whewell chegou mesmo a reconhecer a importância da falsificação – que as hipóteses nunca podem vir a ser provadas como verdadeiras; só se pode mostrar que são falsas. Do outro lado do canal da Mancha, o seu contemporâneo Claude Bernard, um grande biólogo, con­cordaria: 'Uma hipótese é […] o ponto de partida obrigatório de todo o raciocínio experimental. Sem ela não há investigação possível, nunca se aprenderia nada. Não se poderia fazer mais do que um amontoado de observações estéreis. Experi­mentar sem qualquer ideia preconcebida é pairar sem direcção certa […]'. A des­coberta faz parte dos processos irracionais, intuitivos, da mente, enquanto a demonstração é um procedimento lógico rigoroso ou mesmo mecânico. […]
Os que tomam consciência da impossibilidade de um dia atingir a certeza não renunciam ao rigor lógico; limitam antes a sua aplicação aos pontos em que ele é apropriado – a dedução lógica das consequências verificáveis de uma hipótese geral e a determinação da coerência lógica de experiências e observações. Mas, como o método da descoberta envolve imaginação, sorte, aleatoriedade e conjec­turas, a hipótese que está na base da descoberta terá também de ser uma conjec­tura inteligente, um salto em frente no desconhecido que é dado pela imaginação. Este salto em frente é que distingue os grandes cientistas dos outros.»
Heinz R. Pagels, Os Sonhos da Razão, Gradiva, pp. 309-319 (Adaptado).