Democracia: paradigmas e limites - Adriano Moreira

Em relação a todos os modelos e sistemas de governo, a regra de que sempre existe um limite de validade, ou, talvez mais exactamente, de autenticidade, que marca o início da disfunção, parece suficientemente documentada.
Pelo que respeita à democracia, cujas raízes estão, para os ocidentais, na longínqua Atenas e no discurso que Péricles pronunciou perante o túmulo de um soldado morto na Guerra do Peloponeso, se tivéssemos de a avaliar pelo que deixaram escrito Xenofonte, Platão, ou Aristóteles, mal poderíamos compreender o peso que tem no nosso património cultural, vista a pouca benevolência com que se referiram a esta espécie de regime.
Curtido pela guerra, Churchill havia de celebrizar o conceito de que a democracia é o pior dos regimes, com excepção de todos os outros, subscrevendo a convicção de que esta criação ocidental é uma componente do património da humanidade.
Todavia, a submissão das palavras leva a que o conceito nominativo conheça uma variedade equívoca de conteúdos, ainda que todos visem fazer prevalecer que a totalidade do povo está envolvido no conceito. Literalmente, trata-se do governo pelo povo (demos), e não por um grupo, por uma classe, por uma coligação de interesses sectoriais.
Ficou célebre, e paradigmática, a definição de Abraham Lincoln: “a democracia é o governo do povo, pelo povo, e para o povo”.
Antes da segunda guerra-mundial, no ambiente de confronto ideológico que rodeou a subida aos extremos, talvez o conceito nominativo tivesse apoiado três versões dominantes.
A primeira, a mais fiel à herança grega, desenvolveu o conceito de Lincoln, e viria a ser desvirtuada como componente do complexo ideológico do neoconservadorismo que dominou a última administração republicana (Bush) dos EUA depois da queda do Muro de Berlim em 1989; uma segunda versão, que teve forma nos regimes autoritários da Europa, nos quais se inscreve o corporativismo que Salazar definiu na Constituição Portuguesa de 1933, orientou-se pelo serviço aos interesses maiores da comunidade, entendida no sentido institucional que os assume como um tecido que une as gerações passadas, presentes, e herdeiros da responsabilidade pelo futuro; uma terceira, que tem no sovietismo a mais acabada expressão, proclamou-se servidora do interesse de maioria do povo (proletários), reservando uma equívoca liberdade para a aquisição do poder interno no partido, mas sustentando que “o Partido Comunista será capaz de cumprir o seu dever apenas se a sua organização for tão centralizada quanto possível…”.
Foi Tocqueville quem, tendo em vista o conceito mais puro de democracia – governo pelo povo – considerou que esta poderia derivar para o que chamou despotismo democrático: o funcionamento das maiorias absolutas em Portugal, com a tendência para presidencialismo do Primeiro Ministro, lembra o conceito.
Recordando que o conceito de Lincoln foi o que perdurou como referência ocidental, também dele se pode partir para o relacionar com a Declaração de Direitos de Filadélfia (1776), tendo em vista que tal relação de ambas as formulações passa pela falta de autenticidade, e por isso viria a convergir no sentido de, na viragem do milénio, fundir a essência da democracia com a de efectiva vigência da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (10 de Dezembro de 1948).
De facto, o governo pelo povo como um todo, foi um princípio frequente e longamente limitado pela defesa e reserva do acesso à sede do poder a um grupo com uma fronteira definida por exclusão. Era assim na Grécia de Péricles, foi assim na América dos Federalistas; o princípio que Jefferson (1743-1826) inscreveu na Declaração de Filadélfia, segundo o qual todos os homens nascem iguais em direitos, e com direito igual à felicidade, foi limitado por uma teoria de nãos: mas os índios não, os escravos não, os trabalhadores não, as mulheres não.
Os comentários de Toqueville foram sintetizados por Javier Goma com a expressão – Independentes e Débeis, as duas almas do Homo Democraticus. O famoso analista da Democracia na América trata de contrapor o mundo aristocrático ao mundo democrático, nos variados aspectos “da religião, das artes, das ciências, da oratória, da poesia, e do tacto”, tudo com expressão na história: a primeira perspectiva avalia os acontecimentos em relação com os intervenientes individuais, de regra poderosos, enquanto que a perspectiva democrática indaga das causas gerais e despersonalizadas.
Mas aponta que, nas democracias, uma definição dos homens como independentes e fracos, pode originar um despotismo democrático, imaginando que nesta massa compacta, sem distinção de classes, sem hierarquias, todos semelhantes e civicamente iguais, ficariam impedidos de superintender no seu próprio governo, “com o poder entregue a um agente, em princípio funcionário subordinado, de facto, a um senhor”.
Por seu lado Max Weber, mais fiel à perspectiva democrática da avaliação, ao examinar no seu tempo o processo da modernização, descreve o avanço para instituições administrativas e políticas burocratizantes, embora Tocqueville abra horizontes de optimismo ao doutrinar que a democracia induz “o amor à liberdade individual” e a “considerar com desgosto qualquer autoridade”, mas supondo que o resultado não será “reconstituir uma sociedade aristocrática, mas antes fazer brotar a liberdade do interior da sociedade democrática”.
É enriquecedor reler as suas páginas, mas para o nosso tema julgo que o importante é a verificação de que a sociedade da informação e do saber, proposta para a Europa em formação, numa conjuntura de explosão científica e técnica, e num mundo globalizado sem governação, não pode deixar de tomar em consideração, nas suas análises, que o conceito do homem “independente e débil” vai afectando a realidade social e política das suas democracias.
Vista a globalização, e não obstante a doutrinação democrática que dominou a formulação institucional da ONU depois da guerra de 1939-1945, e também foi a de Aliança Atlântica durante os cinquenta anos de guerra fria que terminou com a queda do Muro de Berlim em 1989, é inegável que o fenómeno de alienação progride em demonstrações de contradição entre a libertação formal dos indivíduos que conduz ao relativismo, e a submissão a políticas furtivas que os cidadãos apenas conhecem pelos efeitos.
Esta disfunção da democracia, nos Estados e Grandes Espaços que proclamam a fidelidade ao modelo, tem demonstrações internas e internacionais.
Na ordem interna, além da modéstia das lideranças que é a regra do século, a sociedade da informação e do saber multiplica as fileiras burocráticas com definição por especialidades, cria paralelamente as fileiras transitórias de assessores de cada membro dos governos, enquanto os decisores políticos, obrigados a dispersar-se pelas exigências do Estado-Espectáculo, sofrem o risco crescente e efectivo de se alienarem nessa dependência acrítica dos técnicos, chamam ao governo independentes abonados pelas qualificações académicas, sem fidelidade ideológica. Os líderes formais dos partidos assumem a centralidade teatral das disputas eleitorais, arrastando uma multidão de elegíveis que não terão relação efectiva com a legitimidade expressa pela eleição, e virão a adquirir visibilidades limitadas.
Esta alienação do cidadão independente e débil consolida-se com a formação dos Grandes Espaços em que o globo político se regionaliza, com exemplo directivo na União Europeia.
Um dos factos de maior significado nesta deriva do ideal democrático, e dos textos em que foi definido, está no trajecto do agora chamado Tratado de Lisboa.
Na sua formulação inicial, o diploma foi o resultado de um grupo de trabalho, sob a presidência de Giscard d’Estaing, antigo Presidente da França. Muito inspirado pela tradicional arrogância francesa, entendeu dever, com a concordância dos componentes do grupo, ultrapassar a modéstia de titulação do colectivo, para se considerar Presidente de uma Constituinte, com apoio em restos de memória de atribulada história da Revolução Francesa. No próprio texto incluiriam a afirmação de que os povos europeus agradeciam àquela Constituinte a dádiva de lhes terem oferecido uma Constituição.
As resistências dos povos surpreendidos por uma Constituição que ultrapassava em autoridade as que conheciam como suas, orientou um recuo para a modéstia, adoptando a designação de Tratado de Lisboa, agora em final do processo de ratificação pelos Estados. Resistências ocasionais, como a recusa da Irlanda e as delongas da República Checa, foram rodeadas de um clamor imperativo no sentido de as reservas de adesão não serem consentidas.
Logo de seguida, o processo eleitoral a desencadear para o preenchimento dos novos cargos, Presidente do Conselho da União, Ministro dos Estrangeiros, fez emergir, no floresta de tipos normativos postos a circular com referência ao abstracto conceito de bom governo, um muito concreto grupo de personalidades, todas incluídas no restrito circulo de interventores efectivos, entre os quais a escolha será feita pelo restrito grupo de representantes dos Estados.
Que os eleitorados europeus, os que foram integrados no seio da União durante a guerra fria, e os que entraram depois da queda do Muro cinquenta anos depois, possam avaliar a confiabilidade e exemplaridade dos escolhidos para a selecção final, com conhecimento de causa, é duvidoso.
A situação actual do processo eleitoral democrático português documenta excessivamente estas derivas. Em primeiro lugar, o processo histórico da eleição do Parlamento é dominado pelas lideranças, de modo que o eleitorado de facto é chamado a escolher entre personalidades, supostamente nomes capazes de captarem os votos: a longa lista de candidatos a deputados tem uma dimensão de elegibilidade dependente da elegibilidade do líder, e não dos seus méritos individuais, sendo composta por uma equipa unida nas vontades, propósitos, legitimidade, e moderada liberdade de intervenção.
Por outro lado, numa data de desastre financeiro mundial, com os efeitos colaterais de desastre na economia real de todos os Estados, a condição carente da Europa, no que toca a matérias-primas, energias não-renováveis, e reserva estratégica alimentar, está a ser enfrentada pela União desenvolvendo negociações e acordos principalmente com a Rússia e com a China: nenhum dos programas eleitorais em discussão incluiu este tema nas suas ofertas de governo ao eleitorado. Segue-se a reserva estratégica alimentar, relacionada com as zonas económicas exclusivas, sendo que a portuguesa é talvez a maior do mundo; pelo Tratado de Lisboa, e gestão dos recursos vivos da Zona passa para a competência da Comissão Europeia, que vai inevitavelmente emitir directivas e pedir o cumprimento dos Estados membros: a questão da capacidade para responder à responsabilidade de assumir a gestão da Zona, não consta de nenhum programa eleitoral. Finalmente, para os pequenos países, como é o caso de Portugal, a investigação científica e o ensino superior são componentes de uma das parcelas residuais da soberania funcional e cooperativa do Século XXI, para enfrentar a disputa pela excelência num espaço que agora começa por ser do Atlântico aos Urais: não obstante metade das Universidades da Rede Pública estar em situação de falência técnica, com a avaliação suspensa faz cinco anos, nenhum programa eleitoral incluiu o tema. A alienação do eleitorado democrático nas hierarquias políticas, e na eurocracia que torna esdrúxula a velha burocracia, aponta para o conceito do cidadão independente e débil. Aqui ganha relevo a relação do tufão do globalismo com a democracia. Trata-se do modelo ocidental, com referência institucional nas potências ocidentais com direito de veto no Conselho de Segurança, todas com supremacia política passada, na forma de soberania colonial ou de hegemonia acatada, no conjunto de territórios e povos que chamaram o resto do mundo. O modelo do governo pela maioria (Lincoln) orientou a NATO, o modelo do centralismo democrático (Lenine) vigorou no Pacto de Varsóvia, e no resto do mundo dominou a luta, frequentemente armada, umas vezes directa e outras por entreposta entidade. A queda do Muro de Berlim induziu a superpotência ocidental, EUA, a assumir o fim da história (Fukuyama), a encarar um conflito de civilizações (Huntington), e a substituir o poder da palavra pela palavra do poder, procurando a submissão do adversário eixo do mal pela intervenção militar.
Nesta acção, os ocidentais tiveram razões para meditar sobre o facto de que nenhuma das democracias ocidentais, que partilharam o império euromundista até à descolonização pela ONU, exerceu a democracia no resto do mundo que governara: a gestão política foi sempre exercida por representantes, com os nomes variados de Vice-Reis, Governadores, Altos Comissários, no comando de um instrumento administrativo-militar, mas sempre detendo um poder integral, legislativo, executivo, por vezes judicial.
As libertações, com luta armada, ou sem ela, causaram saldos negativos brutais, na Indochina, no Vietname, na Argélia, na África portuguesa, e nas guerras internas como na separação da União Indiana do Paquistão (mais Bangladesh), e naquelas que a competição pelas hegemonias, vinda do exterior, alongou por várias latitudes. A derrota da democracia perante a prioridade da captura do poder, e da sua utilização viciosa, vai sendo dramaticamente documentada pelo Tribunal Penal Internacional, pelo ineficaz direito-dever de intervenções, pelo pântano das intervenções militares do unilateralismo, pela debilitação da ONU, pela anarquia da ordem mundial.
Os efeitos, não necessariamente colaterais, no espaço ocidental onde nasceu e se desenvolveu o legado doutrinal de Péricles, são o que Rosanvallon chamou a contra-democracia. Trata-se, em primeiro lugar, de as soberanias clássicas terem sido submetidas aos condicionalismos do globalismo sem governança, vendo nascer sedes de poder transnacional, como aconteceu com o Sistema Financeiro, cujo desastre afectou, nesta viragem do milénio, a credibilidade das estruturas estaduais, incluindo as sedes de regulação, e de caminho a economia real; as migrações descontroladas afectam o tecido conjuntivo das sociedades civis de vários Estados democráticos, criando multidões não-integradas; a geografia da fome alargou as suas fronteiras para territórios e gentes desta cidade planetária do Norte.
O resultado, de evidência crescente, é a erosão do valor da confiança, pedra fundamental da democracia.
A doutrina do modelo implicou a divisão dos poderes – legislativo, executivo, judicial, moderador – para evitar o regresso da desconfiança nos governos absolutos; estabeleceu prazos curtos de regresso às eleições, para evitar as debilidades éticas relacionadas com o longo exercício; reservou para a consulta directa ao eleitorado as decisões sobre temas fracturantes; criou instâncias reguladoras, independentes dos poderes políticos, para impedir a desconfiança sobre as facções partidárias.
Vemos no mundo ocidental espaços em que os governantes deslizaram para o autoritarismo, provocando brutais dramas humanos que libertações políticas levam aos tribunais restituídos à independência; nas democracias mais estabilizadas o poder judicial vais sendo excedido pelas exigências da luta contra a corrupção; em muitos lugares a confiança no poder legislativo, a confiança na justiça, a confiança no executivo, a confiança em corpos de gestão e intervenção fundamentais, está afectada. O famoso conceito de Churchill sobre a democracia não foi esquecido, mas a realidade multiplica inquietantes derivas.
Por isso, é para enfrentar a realidade que cresce o movimento de exigência de um regresso ao que já foi chamado a exemplaridade pública, um conceito que evidencia a insuficiência do apelo à lei, pregando uma cidadania que se traduza na emancipação moral em função de uma escala de valores salva da erosão causada pelo relativismo absoluto.
Não se trata necessariamente de optar entre a salvação laica e a salvação pela transcendência, mas da opção pela premissa comum de que cada homem é um fenómeno que não se repete na história da humanidade, um valor nuclear de todas as variantes da democracia, e cuja erosão abre caminho à expansão da sociedade da desconfiança. É por isso, talvez, que o conceito de democracia tende para inseparável da relação do poder com os direitos humanos.

Professor Doutor Adriano Moreira
Presidente do Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa
na Conferência Internacional do Funchal, 6/11/2009