Fundamentos da Ética em S. Mill - por José de Sousa e Brito

Apesar das apontadas diferenças na fundamentação da ética, poderá dizer-se, contudo, que o utilitarismo de Mill coincide nos resultados com uma ética aristotélica das virtudes.
Com efeito, Mill não afirma que a promoção da felicidade deve ser ela própria o fim de todas as acções ou mesmo de todas as regras de acção. Diz que “ela é a justificação, e deveria controlar todos os fins, mas não é ela própria o único fim. Há muitas acções virtuosas, e mesmo modos virtuosos de acção (embora os casos sejam, penso, menos frequentes que muitas vezes se supõe), pelas quais a felicidade é sacrificada na particular instância, produzindo-se mais dor do que prazer. Mas a conduta da qual se pode afirmar verdadeiramente isto, admite justificação só porque se pode mostrar que globalmente existirá mais felicidade no mundo se forem cultivados sentimentos que farão que as pessoas, em certos casos, não queiram saber da felicidade. Admito inteiramente que é verdade isto: que cultivar uma nobreza ideal da vontade e da conduta deveria ser para os seres humanos individuais um fim, perante o qual a específica prossecução quer da sua própria felicidade, quer da de outros (excepto na medida em que estiver incluída naquela ideia) deveria ceder, em caso de conflito … O carácter em si mesmo deveria ser, para o indivíduo, um fim omnipresente, simplesmente porque a existência desta ideal nobreza de carácter, ou perto disso, em abundância, contribuiria mais que qualquer outra coisa para fazer a vida humana feliz, tanto no sentido comparativamente humilde de prazer e ausência de dor, como no sentido mais elevado de tornar a vida, não como ela agora é, quase universalmente, pueril e insignificante, mas tal como seres humanos com capacidades altamente desenvolvidas podem procurar ter.” Uma tal versão do utilitarismo é, em parte, auto-supressiva. Mas não é auto-derrotante, porque a regra segundo a qual se deve esquecer o utilitarismo é ainda utilitarista.
Mas cumpre reconhecer que na interpretação de Aristóteles que tenho vindo a fazer parece levantar-se aqui igualmente uma dificuldade: como passar de uma teoria da sabedoria baseada no raciocínio prático no universo da prática intersubjectiva a uma teoria da felicidade individual que inclui as virtudes?
Penso que não há aqui passagem de uma teoria a outra teoria, mas a afinação ou desenvolvimento de partes diferentes de uma única ética que à partida é das virtudes, incluindo a sabedoria, e da felicidade. Os fins das acções não são adquiridos a partir de uma vida sem finalidade, mas procuram-se e justificam-se a partir de uma vida social cheia de intenções éticas. A definição das virtudes de Aristóteles pressupõe a experiência ética grega. O desenvolvimento da ética das virtudes de Aristóteles faz-se, portanto, no interior desta experiência como um controlo racional de uma parte dos seus passos. Afinal, a ética de Aristóteles segue o modelo da reconstrução racional da vida de cada um de nós.
José de Sousa e Brito in fd.unl.PT