Mito e simbolismo - por Filipe Verde

Tal como a imagem, a palavra não é a coisa porque está dela dividida e separada, mas tal como a imagem a palavra é, digamos, uma emanação ou manifestação da coisa, algo que dela não pode ser separado porque afinal palavra e coisa, como o afirma o senso comum do utilizador da linguagem, pertencem-se. A palavra é assim o que simultaneamente divide e dá unidade ao que dividiu – como diz Gadamer “tudo o que é linguagem tem uma unidade especulativa: ela contém uma distinção entre o ser e o modo como ele se apresenta, mas essa distinção na realidade não é de todo uma distinção”. Nos termos da filosofia hermenêutica a pintura-imagem é o modelo mesmo da linguagem como o “Ser que pode ser compreendido”, como “meio pelo qual e através do qual nós existimos e compreendemos o nosso mundo”. Nesse sentido, a linguagem assemelha-se à luz como aquilo que torna as coisas visíveis – uma imagem de Tomás de Aquino que a filosofia hermenêutica retomou e que revela, e como imagem mostra, o quanto as palavras “aprofundam” aquilo que procuram descrever e compreender e o quanto portanto elas “completam e complementam” a inteligibilidade do mundo.
Sperber, num livro já antigo, diz que o simbolismo é uma “fonte de luz” que não deve ser olhada, porque quem o faz logo fica encandeado e diz “não vejo nada”, dado que “a luz está lá não para ser olhada mas para que possamos ver o que ela ilumina”. O mesmo se pode dizer genericamente da linguagem, dado que o seu modo de ser quando não se converte em metalinguagem e serve a sua vocação cognitiva e representacional (i.e., aquela que é sempre a sua vocação, excepção feita aos devaneios formalistas), é ser invisível perante a realidade que traz para dentro de si e torna pensável, no passo em que ela própria deixa de o ser. É que nem luz nem linguagem são algo que possamos ver senão através do que iluminam. Elas estão lá não para ser olhadas como coisas em si mesmas mas para mostrar o mundo, para o tornar presente e interpretável – dando-lhe cor e nitidez, complementando e completando a sua inteligibilidade.
  
Filipe Verde in O código Lévi-Strauss ou o mundo como correlato objectivo, uc.pt