Os opostos e o sincretismo mítico - Mircea Eliade

“O que nos revelam todos esses mitos e esses símbolos, todos esses ritos e essas técnicas místicas, essas lendas e essas crenças que implicam, com maior ou menor clareza, a coincidentia oppositorum, reunião dos contrários, a totalização dos fragmentos?
Antes de tudo, uma profunda insatisfação do homem com a sua situação atual, com aquilo que se chama condição humana. O homem sente-se dilacerado e separado. Nem sempre lhe é fácil tomar consciência perfeita da natureza dessa operação, pois às vezes ele se sente separado de ‘alguma coisa’ poderosa, outra coisa que não ele; outras vezes sente-se separado de um ‘estado’ indefinível, atemporal, do qual não guarda lembrança precisa, mas do qual se lembra no mais profundo de seu ser: um estado primordial de que usufruía antes do tempo, antes da História. Essa preparação constituiu-se como uma ruptura, nele e no Mundo. Foi uma ‘queda’, não necessariamente no sentido judaico-cristão do termo, todavia uma queda, já que traduzida por uma catástrofe fatal para o género humano e, ao mesmo tempo, por uma mudança ontológica na estrutura do Mundo. De certo ponto de vista, pode-se dizer que numerosas crenças que implicam a coincidentia oppositorum traem a nostalgia de um Paraíso perdido, a nostalgia de um estado paradoxal no qual os contrários coexistem sem confrontar-se e onde as multiplicidades compõem os aspectos de uma misteriosa Unidade. Afinal de contas, foi o desejo de recuperar essa Unidade perdida que obrigou o homem a conceber os opostos como aspectos complementares de uma realidade única. É a partir de tais experiências existenciais, desencadeadas pela necessidade de transcender os contrários, que se articularam as primeiras especulações teológicas e filosóficas. Antes de se tornarem conceitos filosóficos por excelência, o Um, a Unidade, a Totalidade constituíam nostalgias que se revelavam nos mitos e nas crenças e se enalteciam nos ritos e nas técnicas místicas. No nível do pensamento pré-sistemático, o mistério da totalidade traduz o esforço do homem para ter acesso a uma perspectiva na qual os contrários se anulem, o Espírito do Mal se revele incitador do Bem e os Demónios apareçam como o aspecto nocturno dos Deuses. O facto de esses temas e esses motivos arcaicos sobreviverem ainda no folclore e surgirem continuamente nos mundos oníricos e imaginário prova que o mistério da totalidade faz parte integrante do drama humano. Ele volta com múltiplos aspectos e em todos os níveis da vida cultural, tanto na teologia mística e na filosofia quanto nas mitologias e nos folclores universais; tanto nos sonhos e nas fantasias dos modernos quanto nas criações artísticas.

Mircea Eliade in Mefistófeles e o andrógino