Utopia por Rui Pereira

Numa conferência recente, ouvi a expressão "utopia crítica". Suponho que o autor recorreu a essa fórmula para esconjurar as perversões a que as utopias nos conduziram no passado. Em nome da sociedade sem classes, por exemplo, sacrificou-se a liberdade individual e o princípio democrático. A utopia crítica seria, assim, um "não lugar" (é precisamente esse o significado de "utopia" em grego) que nunca se esquece do que é: um programa inatingível, com objectivos inexequíveis, mas que suscita em nós uma constante vontade de aperfeiçoamento.
A "Utopia" de Thomas Morus – como as utopias de Swift, Voltaire ou do ícone da música popular John Lennon (‘Imagine’) – surgiu como crítica filosófica e política de uma sociedade amarrada a preconceitos e tradições injustas. A morte anunciada das utopias, no século passado, constituiu um poderoso estímulo ao ressurgimento desses preconceitos e tradições, em nome do realismo e do pragmatismo. Regimes "empenhados" em atingir a sociedade sem classes transformaram--se, de um momento para o outro, em verdadeiras organizações mafiosas.
Porém, qualquer utopia se torna muito perigosa quando é confundida com um programa de acção. Gera ideologias totalitárias que, como explica Anthony Kenny na sua ‘Torre de Marfim’, são anticientíficas por natureza, visto que pretendem conformar toda a realidade, desde a evolução da sociedade (e da economia) até à transformação do ovo em pintainho, sem considerar os dados da experiência. No fundo, a "má utopia" recusa a grande herança do conceito moderno de ciência e viola a chamada ‘Lei de Hume’, confundindo os planos do ser e do dever ser.
Mas abandonar por completo a utopia (ou as ideologias), mergulhando no realismo e no pragmatismo, também é perigoso. Equivale a reduzir a política à administração de um condomínio, a economia à contabilidade e a segurança à ordem pública. Por isso, é urgente reabilitar a utopia e as ideologias, devolver a esperança aos cidadãos e definir programas políticos bem diferenciados e mobilizadores. Na verdade, é necessário inventar com carácter de urgência (respeitando o étimo grego da palavra "crise") novas utopias que não convoquem os fantasmas do passado.
Rui Pereira in cmjornal.xl.pt