Filosofia Árabe na Idade Média

No fundo do mar há riquezas incomparáveis, mas se queres segurança, busca-a na praia.
Saadi, in Jardim das Rosas

"O pensamento árabe representou, nas suas mais remotas origens, uma dinâmica projecção dos grandes sistemas filosóficos gregos, ainda que vazado em língua semítica e fundamente modificado sob a influência oriental. A dimensão desse facto torna-se imensa quando se considera que o Ocidente deve aos filósofos árabes muito da preservação, já a nível crítico, do platonismo e, sobretudo, do aristotelismo.
A filosofia islâmica (“al-falsafa”) consubstancia o pensamento expresso em língua árabe, intimamente ligado aos dogmas religiosos e escatológicos que floresceram entre os séculos VII e XV. Excluem-se dessa denominação as tendências modernas e contemporâneas da filosofia árabe, analisadas apenas como floração do Oriente dentro e fora dos limites da Idade Média latina. 
Nos primórdios, e em rigor até ao século IX, as especulações filosóficas do mundo árabe restringiam-se às discussões teológicas das primeiras seitas e escolas ascéticas, cuja suprema preocupação residia no exame de questões éticas e morais. O primeiro grande representante dessa época foi Hassan al-Basri, notável cultor da reflexão moral de índole teórica e responsável pelo início da maioria das discussões teológicas que logo se cristalizariam na constituição de seitas e escolas teológicas, como a de Antioquia (século III), de Nasibim e de Nasibim-Edessa, a principal delas, que prosperou entre os séculos IV e V e reuniu os nestorianos condenados como heréticos pelo Concílio de Éfeso (431). A esses nestorianos somaram-se depois outras seitas, como a dos monofisitas (responsáveis pela introdução do misticismo e dos ideais neoplatónicos), de zoroastras persas, de pagãos de Harran e até mesmo de judeus.
Essas escolas, no interior das quais se destacaram nomes de craveira universal como Al-Gazali, Al-Hatimi, o turco Abu Nasr Al-Farabi, Abu Ibn Sina (Avicena), Avempace e Ibn Rushd (Averroes), falecido em 594 d.H./1198 d.C. – estes três últimos já na Espanha muçulmana – dedicaram-se inicialmente a debates de questões como a dos atributos divinos e os conflitos entre a predestinação e o livre-arbítrio. Contribuíram consideravelmente para a concretização de uma reflexão filosófica que já se poderia dizer autónoma, cujo expoente supremo foi Abu Yusuf Ya’qub Ibn Ishaq (al-Kindi), conhecido como “o filósofo dos árabes”, que viveu no século IX. Toda essa estratificação orgânica da filosofia árabe foi possível, em grande parte, graças à transmissão, ao universo muçulmano, de consideráveis vertentes dos sistemas gregos, sobretudo do aristotelismo e do neoplatonismo, a montante de versões sírias do helenismo, das actividade filosófico-religiosa dos nestorianos, do misticismo dos teólogos monofisitas egípcios, e finalmente, às traduções muçulmanas das versões sírias dos textos gregos.
Paralelamente às doutrinas desenvolvidas pelos arautos orientais Avicena e Al-Gazali, destacam-se aquelas que, a partir do século XI, foram disseminadas pelos pensadores muçulmanos do Al-Andalus, onde sobressai o nome de Averroés, o maior de entre todos os filósofos árabes. Antes dele, distinguiram-se o filósofo judeu Avicebron, Abubaker (autor de um curioso romance filosófico) e, sobretudo, Avempace, que descreveu o itinerário seguido pelo homem para se reunir ao intelecto agente, substância una e comum a todos os entendimentos possíveis.
Seria a doutrina de Averroés, contudo, a marcar três outros momentos históricos: no princípio do século XIII, com o “averroísmo” latino de Siger de Brabante, no final desse mesmo século, fundamentalmente por meio de Duns Scotus, Pietro d' Albano e Marsílio de Pádua, e na segunda metade do século XV, com os “averroístas” da Universidade de Pádua.
Ao século XV pertence também o último valor expressivo da filosofia árabe, Ibn-Jaldun, de tendência neoplatónica.
Al-Razi (falecido em 925), discípulo de filósofos pré-socráticos como Demócrito, foi um espírito enciclopédico, tendo repartido a sua vida entre Rayy e Baghdad, onde deixou perto de duzentas obras. Médico notável, foi o primeiro sábio árabe (’alim) a afirmar a sua crença no progresso contínuo e, por conseguinte, no carácter provisório de qualquer investigação. Não era visto como um verdadeiro filósofo, no sentido em que era ateu, atacava os profetas, as leis reveladas e os milagres: “é impensável”, escrevia ele, “que Deus haja distinguido certos homens para lhes dar a prevalência sobre a massa dos outros, conferir-lhes a missão profética e erigi-los em guias da humanidade”.
Numa curiosa simbiose ecuménica animada pela civilização islâmica, a cultura cristã e a judiaria Aquitânia, a Idade Média assistiu igualmente ao nascimento de toda uma literatura de teologia e filosofia escrita em árabe por eruditos judeus. Maimonides, Sa’adia Fayyuni, Yehuda Halevy, Bahya Ibn Paquda e Ibn Gabirol desempenharam um papel basilar nessa difusão cultural. Moshe Sefardi – que, pela sua conversão em 1106, se tornou em Pedro Afonso – recolheu aforismos e contos árabes e indianos que inspirariam, à posteriori, um bom número de autores cristãos, como Chaucer ou Bocácio. O rabi Abraham Bar Hyga (falecido cerca de 1145), astrónomo, matemático e filósofo, difundiu, a partir de Barcelona, o pensamento filosófico muçulmano e o rabi Abraham Bar Izza, tradutor de várias obras para o hebreu e o latim, ministrou o ensino da ciência e do pensamento árabe em vários países da Europa."

António Rodrigues in umcertoriente.blogspot.pt