Querelas da Retórica e da lógica

Vem a propósito assinalar que muitas das actuais críticas à retórica não passam de mera transposição para os nossos dias desta querela platónica da antiguidade, pelo que não será pela novidade que poderão surpreender. Sucede até que, pelo menos no que respeita à forma de encarar a persuasão inerente ao acto retórico, o mérito vai para Platão, o qual, depois dos ataques que lhe desferiu numa obra da juventude (Górgias), soube reconhecer, já na maturidade, o incontornável papel que a mesma desempenha em toda a argumentação. Confirma-o, nomeadamente, no “Fedro”, quando, depois de admitir o exagero das suas censuras, resolve pôr a retórica a dizer de sua justiça, nesta muito esclarecedora interpelação: “de que estais a tagarelar, homens de pouca monta? Não sabeis por acaso que eu não obrigo ninguém, que ignore a verdade, a aprender a falar, mas, posto que o meu conselho tenha algum merecimento, primeiro cumpre aprender a verdade e só depois se dedicar à minha prática? Eis, por conseguinte, o que declaro solenemente: nem por isso, o que estiver de posse da verdade a conseguirá impor sem recorrer à arte da persuasão".
Não será então estranho que uma grande parte do pensamento lógico-científico contemporâneo continue ainda preso às mesmas dificuldades que Platão enfrentou apenas na sua juventude? É claro que não pretendo recorrer aqui ao estafado argumento de autoridade, propondo o falacioso raciocínio “porque Platão disse... temos que acreditar” pois, como é sabido, do facto do grande filósofo ter vindo a reconhecer o papel da persuasão na retórica, não se segue que ele estivesse certo. Com essa interrogada estranheza quero, mais exactamente, por um lado, ilustrar a perenidade das dificuldades que a retórica sempre suscitou, mesmo em autores que beneficiam de uma bem fundada presunção de credulidade e, por outro, igualmente sugerir que uma das vias para ultrapassar essas dificuldades pode muito bem ser a que Platão seguiu, separando a procura de verdade, da sua persuasiva partilha. O que nos nossos dias se poderia, talvez, traduzir pela distinção (pese embora o artifício de todas as distinções) entre o estudo lógico dos argumentos e o estudo retórico da sua comunicação.
Em qualquer caso, não parece admissível que haja, por vezes, quem chegue ao extremo de defender que o retórico está apenas interessado na persuasão e que não persegue seriamente a verdade, daí deduzindo que nunca se sentirá moralmente obrigado a rejeitar a posição que defende, mesmo depois de lhe demonstrarem que é errada. Que razão de ciência (ou mesmo empírica) pode invocar quem sobre a retórica e os retóricos exibe tão absurdo convencimento? O preconceito - porque é disso mesmo que se trata – surge ainda mais incompreensível quando vem de áreas de investigação que, paradoxalmente, se mostram muito rigorosas no combate a todos os tipos de falácias. E tudo leva a crer que é precisamente este equívoco quanto ao alcance e os efeitos da persuasão na retórica, que está na origem do habitual afastamento (nalguns casos traduzido mesmo por uma evidente incompatibilidade) entre “lógicos” e “retóricos”.
Américo de Sousa in www.bocc.ubi.pt